dione carlos

São Paulo - SP

Fragmento Teatral

ENXAME

Bisi
Entraram em transe, a contra gosto

Asali
Talvez tenham até transado depois daquilo

Ayobami
O tipo de milagre pelo qual eu rezo

Femi
São tão sugestionáveis

Bisi
Não, eles também possuem raízes, como nós

Oni
Estavam em transe

Asali
Estavam possuídos

Femi
Despossuídos de si

Oni
Primeiro gritavam: Bruxas!
Depois caíam no chão, tortos

Asali
Quem anda errado, cai sempre errado, machuca e vive machucado

Femi
Despossuídos de qualquer certeza

Bisi
O que eles mais temem está dentro deles, bem escondido, como uma bomba armada

Ayobami
Agora que nos colocamos como bruxas, alguns nos seguem, no lugar de perseguir

Oni
O medo é uma religião com muitos fiéis

Bisi
Nós armamos esta bomba que eles carregam

Femi
Despossuídos do medo

Ayobami
Espero que esta bomba interior exploda de uma vez

Bisi
Não estamos aqui para destruir

Asali
Tenho a impressão que tiveram o primeiro encontro com o próprio corpo

Bisi
Estamos aqui pelo direito de continuar existindo

Oni
Como bruxas

Bisi
O que é uma bruxa?

Asali
Pareciam bebês descobrindo as próprias mãos

Ayobami
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si

Asali
Como um bebê sugando o próprio dedão

Oni
O que é uma bruxa para eles?

Ayobami
Para eles a terra é plana
Existe mesmo o fim do mundo

Bisi
O que é uma bruxa, na prática?

Ayobami
Não distinguem um macassá de um manjericão!

Femi
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si

Asali
Como um bebê reconhecendo a voz da mãe e do pai

Bisi
Toda e qualquer
Não é uma casta privilegiada

Ayobami
Mas ser bruxa é um privilégio
Todo privilégio envolve muita responsabilidade

Asali
Como um bebê puxando o próprio cabelo

Ayobami
Eles jamais serão bruxas

Femi
Despossuídos do temor ao Divino

Asali
Como um bebê, de pé, pela primeira vez

Femi
Estavam divinizados

Ayobami
Não serão bruxas como nós

Bisi
Não queremos que eles sejam como nós, queremos?

Asali
Dançando pela primeira vez
Movimentando o corpo com música

Bisi
Queremos que despertem

Oni
Toda religião nos coloca para dormir

Femi
Eu sonho com Deus
Ele não é mulher, nem homem
Mas eu o chamo de Deusa

Ayobami
Quero que nos respeitem, que não vejam o nosso conhecimento como uma solução
mágica para os seus problemas materiais, porque eles rezam para o Divino em suas
religiões de fachada e nos procuram para curar doenças, restituir riquezas, atrair o bem
amado... Até quando nos verão neste papel?

Bisi
Nós os acolheremos com toda a sua ignorância
Eles são muitos, mas nós somos muitas mais
Vamos curá-los, aos poucos, com mel, folha e água...

Femi
Curá-los pela escuta

Asali
Como bebês, com os olhos fechados, sorrindo para dentro, dançando, até que eles se
jogavam no chão, como se algo atropelasse aquele momento, como se qualquer
possibilidade de voltar a ser uma criança, de ouvir, ver e falar pela primeira vez fosse
atropelada por quatro pneus de caminhão

Bisi
Estão muito machucados

Ayobami
Nós também! Há séculos, machucadas!

Asali
Sem qualquer possibilidade de tocar a própria pureza

Bisi
Não SOMOS machucadas
Fomos machucadas

Ayobami
Não farei mais o papel de curandeira, não do modo como eles imaginam

Bisi
Não, não mais

Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes

Asali
Acordá-los, acordar
Acordar com todos os músculos, nervos, ossos, sistemas
Acordar com tudo o que somos, temos
Acordar o coração, o pulmão, o estômago
Acordar a testa, o queixo, os lábios
Acordar os cabelos, os pelos
Acordar o púbis, o cóccix, o fêmur
Acordar, como pela primeira vez, dentro de um útero

Ayobami
É preciso respeitar o bate-folha
É preciso respeitar o ofó-palavra
É preciso respeitar a água da moringa
É preciso respeitar o sumo e o sangue
É preciso respeitar a pena e a pemba
É preciso respeitar o ponto riscado, a vela acesa, a esteira no chão
É preciso respeitar a mão que limpa, a mão que cuida, a mão que abre o búzio
É preciso respeitar a si mesma

Bisi
Conhecimento acumulado, não dividido, vira informação
Deixa de ser conhecimento
Ninguém vai roubar o nosso ouro, nem o nosso mel, muito menos a nossa música
Lembre-se: Indicador Indicador, onde está o mel?
Ninguém, além de nós, canta COM o pássaro
Eles podem reproduzir o canto, mas o pássaro nunca virá
Porque eles cantam PARA o pássaro, não sabem cantar COM ele, COMO ele
Você pode enganar alguns, muitos, não a todos, sempre
E ao pássaro ancestral, NUNCA, ninguém o engana

Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Eles devem ter tantos pesadelos

Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Antes de abraçarem o tempo
Ontem é agora
Hoje é agora
Amanhã é agora
Agora é aqui
Deixe que o tempo lhe abrace
Deixe que o tempo trabalhe em você
Deixe que o tempo aconteça no seu corpo, no seu espírito
Que ele não passe rápido, nem devagar demais por você
Tempo, me abraça
Me abraça, tempo

Oni
Eu tive tantos pesadelos
Também dormi sonhos assim
Antes de voltar para casa
Antes de estar com vocês novamente
O medo é uma religião com muitos fiéis
Eu afirmava verdades do mundo para esconder as minhas incertezas
Até aquele dia, caída na rua
Perdida e sozinha
Longe da colmeia-cidade-mãe
Longe de vocês
Ali, caída na rua
Perdida e sozinha
Voltei para mim, para nós
Troquei o medo pelo amor a tudo
Agora que eu voltei para mim, para nós, não quero que ninguém esteja onde eu estive
Ninguém mais
Nenhum, nenhuma a menos
Eu não quero ser como eles

Ayobami
Oni, sua mão não treme mais

(Fragmento de Ialodês)

Dione Carlos é dramaturga, roteirista e atriz.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

Dione Carlos é dramaturga, roteirista e atriz. Dramaturga formada pela SP Escola de Teatro. Cursou Jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo. Atua como dramaturga em parceria com cias de teatro. Possui vinte e cinco textos encenados dentro e fora do Brasil, em países como México, Estados Unidos, Inglaterra, Colômbia e Portugal. Foi orientadora artística do Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Santo André e dramaturga convidada do projeto espetáculo da Fábrica de Cultura da Brasilândia por três anos. Ministra oficinas de dramaturgia pelo país. Foi convidada pela Embaixada do Brasil na Grécia para representar o Brasil no Dia Internacional da Língua Portuguesa, tendo palestrado no Museu da Acrópole em Atenas, em maio de 2019. Lançou seu primeiro livro em 2017, Dramaturgias do Front, com três peças. Em 2019, integrou a publicação Dramaturgia Negra, com o texto Ialodês, escrito para a Cia Capulanas de Arte Negra. Participa de diversas coletâneas. Possui seis livros publicados. Em 2021 foi selecionada pela Play Company (Cia de teatro de Nova Iorque), para uma residência artística do projeto Black Women Theatre Makers, que escolhe quatro artistas mulheres pelo mundo para as apoiarem em seus projetos. Como roteirista trabalhou no Sesc TV, em canais como Disney, GNT, Globoplay. Seu mais recente trabalho é Elza Infinita, documentário sobre Elza Soares, recentemente indicado como finalista no festival de cinema de Nova Iorque. Atualmente é autora e roteirista contratada pela Rede Globo.

Já escreveu mais de 25 dramaturgias, entre elas: Baguá (2010); Mátria (2010); Rubro (2012); Oriki (2013); Sereias (2013); Onã (2013); Dalí (2014); Titio (2015); Mamute (2015); Piscina (2016); Baquaqua (2016); Revoltar (2018); Narrativas em disputa – Sertanias (2019); Malungu, Ngoma vem – do ouro ao nióbio (2019); Matriarquia (2020) e Maria d’Apparecida: Luz Negra (2021). Na sua primeira publicação, Dramaturgias do Front (2017), encontramos os textos Sete; Kaim e Bonita. Fez parte da coletânea Dramaturgia negra, editada pela FUNARTE, com o texto Ialodês (2018). Publicou pela Glac Edições a dramaturgia Black Brecht (2020).

Realizou curadoria do projeto Dramaturgias 2 do SESC Ipiranga, realizado em 2019, dando foco para a produção das mulheres na história do teatro brasileiro. Além disso, é professora de dramaturgia, sendo orientadora na Escola Livre de Teatro em Santo André. Ministrou pelo Itaú Cultural o curso Dramaturgia Negra: A Palavra Viva, em 2020, com artistas de todo país.

Duas noções que parecem colaborar para a leitura da dramaturgia de Dione são a de Escrevivência de Conceição Evaristo e a de Afrografias de Leda Maria Martins. Essas duas concepções nos levam à máxima da dramaturga: “escrever é se inscrever”. Neste sentido, a produção de uma mulher negra não pode ser lida sem considerar sua condição. A inscrição da qual fala Dione nos convida a pensar sua dramaturgia a partir da possibilidade posta em cena de narrativas silenciadas pela sociedade patriarcal. Trata-se de ampliar vozes que resistem ainda na contemporaneidade. Para Dione, “voz não se dá, não se empresta, não se representa. Voz se amplia”. É neste sentido que ela afirma que a história do Brasil não foi contada. A dramaturgia da autora objetiva construir narrativas que dão espaço a imaginários pulsantes sobre uma cultura decolonial brasileira.

Essa é uma das possibilidades que evocam a dramaturgia de Dione. “E se Brecht fosse negro?” Esse questionamento nos joga para uma criação de futuro possível, ao mesmo tempo em que investiga o passado. A pesquisa da dramaturgia Black Brecht recorre a noções como afrofuturismo, afropolitanismo e afrotopia. O texto, então, se dá nesse movimento de Sankofa: passado e futuro se encontram num presente insistente. A pesquisadora Rosane Borges, no posfácio da publicação, indica que essa operação “mostra-se como um plano de emergência inescapável para a ascensão de fundamentos e matrizes quase sempre ignorados, silenciados, subalternizados”.

Eugênio Lima adiciona que “na escritura de Dione Carlos a poética extrapola os limites de tempo, clima ou nacionalidade. É um olhar sobre o futuro, carregando seus mortos, é ancestralidade contemporânea; nela a memória é feita de lacunas e são essas lacunas da diáspora negra que dizem quem somos e/ou do que fazemos parte. E sem impor, é ao mesmo tempo estrutural e fugidia, é o avesso do essencialismo sistemático – centro da desumanização, fruto da mentalidade colonizadora –, pois foi ele, o colonizador, que interditou a humanidade de todxs no mundo dos vivos. Colonialismo é nazismo, já dizia Aimé Césaire”.

Dione dá eco e ao mesmo tempo cria novas narrativas sobre a negritude. Neste sentido, suas dramaturgias pedem, evocam outras estruturas. A professora Leda Maria Martins nos indica a oralitura como uma forma de percepção das materialidades não literárias presentes nos acontecimentos, nos rituais da cultura popular afrodescendente. Ela analisa o congado como uma construção de narrativa, baseada na elaboração não verbal, que tem o corpo como dispositivo primordial da construção do saber. 

Ialodês é uma dramaturgia que exemplifica essa noção criada pela professora Leda. O mito de uma sociedade matriarcal que luta para se manter viva através do prazer e do gozo aparece na escrita de maneira evidente, porém é a dimensão ritual que sustenta o texto. Pra que isso seja possível, observamos a criação de outras estruturas dramatúrgicas que não as delimitadas pela tradição aristotélica. Dione recorre aos ritos do candomblé para dar forma à dramaturgia. Não se trata de uma aplicação, mas sim de uma forma que é si mesma uma sabedoria ancestral, advinda do corpo e não do conhecimento lógico, impositivo e letrado.

Em 2019, o crítico e pesquisador Guilherme Diniz escreveu sobre o Manisfesta Cabocla, texto que Dione criou para a mostra Janela de Dramaturgia. Evocando o texto de Dione, ele reforça a figura da Cabocla como ícone para delinear o trabalho da dramaturga: “Ao longo do texto, a cabocla, esta atuante/persona feminina articuladora e aglutinadora de todo o discurso dramatúrgico, não é uma figura fixa, mas multifacetada, movente e dinâmica, associada, no texto, a diversas mulheres, como: Leda Martins, Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Idylla Silmarovi, etc… O traço comum entre elas: são, cada qual a seu modo, subjetividades insurgentes; pensadoras e criadoras a desafiar as lógicas dominantes, costurando conhecimentos nas frestas. A cabocla textualizada por Dione Carlos é uma figura quimérica, não por ser monstruosa, mas por conjugar em si uma multiplicidade de formas e elementos, desestruturando os discursos homogeneizadores acerca do seu ser”.

Ligia Souza

Dione Carlos é dramaturga, roteirista e atriz.

Dione Carlos é dramaturga, roteirista e atriz. Dramaturga formada pela SP Escola de Teatro. Cursou Jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo. Atua como dramaturga em parceria com cias de teatro. Possui vinte e cinco textos encenados dentro e fora do Brasil, em países como México, Estados Unidos, Inglaterra, Colômbia e Portugal. Foi orientadora artística do Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Santo André e dramaturga convidada do projeto espetáculo da Fábrica de Cultura da Brasilândia por três anos. Ministra oficinas de dramaturgia pelo país. Foi convidada pela Embaixada do Brasil na Grécia para representar o Brasil no Dia Internacional da Língua Portuguesa, tendo palestrado no Museu da Acrópole em Atenas, em maio de 2019. Lançou seu primeiro livro em 2017, Dramaturgias do Front, com três peças. Em 2019, integrou a publicação Dramaturgia Negra, com o texto Ialodês, escrito para a Cia Capulanas de Arte Negra. Participa de diversas coletâneas. Possui seis livros publicados. Em 2021 foi selecionada pela Play Company (Cia de teatro de Nova Iorque), para uma residência artística do projeto Black Women Theatre Makers, que escolhe quatro artistas mulheres pelo mundo para as apoiarem em seus projetos. Como roteirista trabalhou no Sesc TV, em canais como Disney, GNT, Globoplay. Seu mais recente trabalho é Elza Infinita, documentário sobre Elza Soares, recentemente indicado como finalista no festival de cinema de Nova Iorque. Atualmente é autora e roteirista contratada pela Rede Globo.

Já escreveu mais de 25 dramaturgias, entre elas: Baguá (2010); Mátria (2010); Rubro (2012); Oriki (2013); Sereias (2013); Onã (2013); Dalí (2014); Titio (2015); Mamute (2015); Piscina (2016); Baquaqua (2016); Revoltar (2018); Narrativas em disputa – Sertanias (2019); Malungu, Ngoma vem – do ouro ao nióbio (2019); Matriarquia (2020) e Maria d’Apparecida: Luz Negra (2021). Na sua primeira publicação, Dramaturgias do Front (2017), encontramos os textos Sete; Kaim e Bonita. Fez parte da coletânea Dramaturgia negra, editada pela FUNARTE, com o texto Ialodês (2018). Publicou pela Glac Edições a dramaturgia Black Brecht (2020).

Realizou curadoria do projeto Dramaturgias 2 do SESC Ipiranga, realizado em 2019, dando foco para a produção das mulheres na história do teatro brasileiro. Além disso, é professora de dramaturgia, sendo orientadora na Escola Livre de Teatro em Santo André. Ministrou pelo Itaú Cultural o curso Dramaturgia Negra: A Palavra Viva, em 2020, com artistas de todo país.

Duas noções que parecem colaborar para a leitura da dramaturgia de Dione são a de Escrevivência de Conceição Evaristo e a de Afrografias de Leda Maria Martins. Essas duas concepções nos levam à máxima da dramaturga: “escrever é se inscrever”. Neste sentido, a produção de uma mulher negra não pode ser lida sem considerar sua condição. A inscrição da qual fala Dione nos convida a pensar sua dramaturgia a partir da possibilidade posta em cena de narrativas silenciadas pela sociedade patriarcal. Trata-se de ampliar vozes que resistem ainda na contemporaneidade. Para Dione, “voz não se dá, não se empresta, não se representa. Voz se amplia”. É neste sentido que ela afirma que a história do Brasil não foi contada. A dramaturgia da autora objetiva construir narrativas que dão espaço a imaginários pulsantes sobre uma cultura decolonial brasileira.

Essa é uma das possibilidades que evocam a dramaturgia de Dione. “E se Brecht fosse negro?” Esse questionamento nos joga para uma criação de futuro possível, ao mesmo tempo em que investiga o passado. A pesquisa da dramaturgia Black Brecht recorre a noções como afrofuturismo, afropolitanismo e afrotopia. O texto, então, se dá nesse movimento de Sankofa: passado e futuro se encontram num presente insistente. A pesquisadora Rosane Borges, no posfácio da publicação, indica que essa operação “mostra-se como um plano de emergência inescapável para a ascensão de fundamentos e matrizes quase sempre ignorados, silenciados, subalternizados”.

Eugênio Lima adiciona que “na escritura de Dione Carlos a poética extrapola os limites de tempo, clima ou nacionalidade. É um olhar sobre o futuro, carregando seus mortos, é ancestralidade contemporânea; nela a memória é feita de lacunas e são essas lacunas da diáspora negra que dizem quem somos e/ou do que fazemos parte. E sem impor, é ao mesmo tempo estrutural e fugidia, é o avesso do essencialismo sistemático – centro da desumanização, fruto da mentalidade colonizadora –, pois foi ele, o colonizador, que interditou a humanidade de todxs no mundo dos vivos. Colonialismo é nazismo, já dizia Aimé Césaire”.

Dione dá eco e ao mesmo tempo cria novas narrativas sobre a negritude. Neste sentido, suas dramaturgias pedem, evocam outras estruturas. A professora Leda Maria Martins nos indica a oralitura como uma forma de percepção das materialidades não literárias presentes nos acontecimentos, nos rituais da cultura popular afrodescendente. Ela analisa o congado como uma construção de narrativa, baseada na elaboração não verbal, que tem o corpo como dispositivo primordial da construção do saber. 

Ialodês é uma dramaturgia que exemplifica essa noção criada pela professora Leda. O mito de uma sociedade matriarcal que luta para se manter viva através do prazer e do gozo aparece na escrita de maneira evidente, porém é a dimensão ritual que sustenta o texto. Pra que isso seja possível, observamos a criação de outras estruturas dramatúrgicas que não as delimitadas pela tradição aristotélica. Dione recorre aos ritos do candomblé para dar forma à dramaturgia. Não se trata de uma aplicação, mas sim de uma forma que é si mesma uma sabedoria ancestral, advinda do corpo e não do conhecimento lógico, impositivo e letrado.

Em 2019, o crítico e pesquisador Guilherme Diniz escreveu sobre o Manisfesta Cabocla, texto que Dione criou para a mostra Janela de Dramaturgia. Evocando o texto de Dione, ele reforça a figura da Cabocla como ícone para delinear o trabalho da dramaturga: “Ao longo do texto, a cabocla, esta atuante/persona feminina articuladora e aglutinadora de todo o discurso dramatúrgico, não é uma figura fixa, mas multifacetada, movente e dinâmica, associada, no texto, a diversas mulheres, como: Leda Martins, Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Idylla Silmarovi, etc… O traço comum entre elas: são, cada qual a seu modo, subjetividades insurgentes; pensadoras e criadoras a desafiar as lógicas dominantes, costurando conhecimentos nas frestas. A cabocla textualizada por Dione Carlos é uma figura quimérica, não por ser monstruosa, mas por conjugar em si uma multiplicidade de formas e elementos, desestruturando os discursos homogeneizadores acerca do seu ser”.

Ligia Souza

ENXAME

Bisi
Entraram em transe, a contra gosto

Asali
Talvez tenham até transado depois daquilo

Ayobami
O tipo de milagre pelo qual eu rezo

Femi
São tão sugestionáveis

Bisi
Não, eles também possuem raízes, como nós

Oni
Estavam em transe

Asali
Estavam possuídos

Femi
Despossuídos de si

Oni
Primeiro gritavam: Bruxas!
Depois caíam no chão, tortos

Asali
Quem anda errado, cai sempre errado, machuca e vive machucado

Femi
Despossuídos de qualquer certeza

Bisi
O que eles mais temem está dentro deles, bem escondido, como uma bomba armada

Ayobami
Agora que nos colocamos como bruxas, alguns nos seguem, no lugar de perseguir

Oni
O medo é uma religião com muitos fiéis

Bisi
Nós armamos esta bomba que eles carregam

Femi
Despossuídos do medo

Ayobami
Espero que esta bomba interior exploda de uma vez

Bisi
Não estamos aqui para destruir

Asali
Tenho a impressão que tiveram o primeiro encontro com o próprio corpo

Bisi
Estamos aqui pelo direito de continuar existindo

Oni
Como bruxas

Bisi
O que é uma bruxa?

Asali
Pareciam bebês descobrindo as próprias mãos

Ayobami
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si

Asali
Como um bebê sugando o próprio dedão

Oni
O que é uma bruxa para eles?

Ayobami
Para eles a terra é plana
Existe mesmo o fim do mundo

Bisi
O que é uma bruxa, na prática?

Ayobami
Não distinguem um macassá de um manjericão!

Femi
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si

Asali
Como um bebê reconhecendo a voz da mãe e do pai

Bisi
Toda e qualquer
Não é uma casta privilegiada

Ayobami
Mas ser bruxa é um privilégio
Todo privilégio envolve muita responsabilidade

Asali
Como um bebê puxando o próprio cabelo

Ayobami
Eles jamais serão bruxas

Femi
Despossuídos do temor ao Divino

Asali
Como um bebê, de pé, pela primeira vez

Femi
Estavam divinizados

Ayobami
Não serão bruxas como nós

Bisi
Não queremos que eles sejam como nós, queremos?

Asali
Dançando pela primeira vez
Movimentando o corpo com música

Bisi
Queremos que despertem

Oni
Toda religião nos coloca para dormir

Femi
Eu sonho com Deus
Ele não é mulher, nem homem
Mas eu o chamo de Deusa

Ayobami
Quero que nos respeitem, que não vejam o nosso conhecimento como uma solução
mágica para os seus problemas materiais, porque eles rezam para o Divino em suas
religiões de fachada e nos procuram para curar doenças, restituir riquezas, atrair o bem
amado... Até quando nos verão neste papel?

Bisi
Nós os acolheremos com toda a sua ignorância
Eles são muitos, mas nós somos muitas mais
Vamos curá-los, aos poucos, com mel, folha e água...

Femi
Curá-los pela escuta

Asali
Como bebês, com os olhos fechados, sorrindo para dentro, dançando, até que eles se
jogavam no chão, como se algo atropelasse aquele momento, como se qualquer
possibilidade de voltar a ser uma criança, de ouvir, ver e falar pela primeira vez fosse
atropelada por quatro pneus de caminhão

Bisi
Estão muito machucados

Ayobami
Nós também! Há séculos, machucadas!

Asali
Sem qualquer possibilidade de tocar a própria pureza

Bisi
Não SOMOS machucadas
Fomos machucadas

Ayobami
Não farei mais o papel de curandeira, não do modo como eles imaginam

Bisi
Não, não mais

Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes

Asali
Acordá-los, acordar
Acordar com todos os músculos, nervos, ossos, sistemas
Acordar com tudo o que somos, temos
Acordar o coração, o pulmão, o estômago
Acordar a testa, o queixo, os lábios
Acordar os cabelos, os pelos
Acordar o púbis, o cóccix, o fêmur
Acordar, como pela primeira vez, dentro de um útero

Ayobami
É preciso respeitar o bate-folha
É preciso respeitar o ofó-palavra
É preciso respeitar a água da moringa
É preciso respeitar o sumo e o sangue
É preciso respeitar a pena e a pemba
É preciso respeitar o ponto riscado, a vela acesa, a esteira no chão
É preciso respeitar a mão que limpa, a mão que cuida, a mão que abre o búzio
É preciso respeitar a si mesma

Bisi
Conhecimento acumulado, não dividido, vira informação
Deixa de ser conhecimento
Ninguém vai roubar o nosso ouro, nem o nosso mel, muito menos a nossa música
Lembre-se: Indicador Indicador, onde está o mel?
Ninguém, além de nós, canta COM o pássaro
Eles podem reproduzir o canto, mas o pássaro nunca virá
Porque eles cantam PARA o pássaro, não sabem cantar COM ele, COMO ele
Você pode enganar alguns, muitos, não a todos, sempre
E ao pássaro ancestral, NUNCA, ninguém o engana

Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Eles devem ter tantos pesadelos

Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Antes de abraçarem o tempo
Ontem é agora
Hoje é agora
Amanhã é agora
Agora é aqui
Deixe que o tempo lhe abrace
Deixe que o tempo trabalhe em você
Deixe que o tempo aconteça no seu corpo, no seu espírito
Que ele não passe rápido, nem devagar demais por você
Tempo, me abraça
Me abraça, tempo

Oni
Eu tive tantos pesadelos
Também dormi sonhos assim
Antes de voltar para casa
Antes de estar com vocês novamente
O medo é uma religião com muitos fiéis
Eu afirmava verdades do mundo para esconder as minhas incertezas
Até aquele dia, caída na rua
Perdida e sozinha
Longe da colmeia-cidade-mãe
Longe de vocês
Ali, caída na rua
Perdida e sozinha
Voltei para mim, para nós
Troquei o medo pelo amor a tudo
Agora que eu voltei para mim, para nós, não quero que ninguém esteja onde eu estive
Ninguém mais
Nenhum, nenhuma a menos
Eu não quero ser como eles

Ayobami
Oni, sua mão não treme mais

(Fragmento de Ialodês)