curadoria geral

Vinícius de Souza (MG) é dramaturgo, diretor, ator, professor e pesquisador teatral. É diretor artístico da plataforma Planos Incríveis, dirigiu o Grupo Galpão e trabalhou com importantes nomes do teatro brasileiro. É mestre em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do festival Janela de Dramaturgia e um dos fundadores da editora Javali. Coordena o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia do Galpão Cine Horto e leciona no Centro de Formação Artística e Tecnológica – Palácio das Artes e na Pós-Graduação da Puc Minas.

Há muito tempo venho me dedicando a projetos que se voltam para a divulgação e o fomento da dramaturgia brasileira. A Janela de Dramaturgia, uma mostra de escrita teatral contemporânea que acontece em Belo Horizonte, Minas Gerais, é um exemplo bem relevante dentre essas iniciativas. Completando dez anos em 2022, a Janela apresentou uma série de textos inéditos, provocou debates acalorados e promoveu encontros importantes entre autores e autoras de teatro de muitas partes do Brasil e de países vizinhos. É no contexto de comemoração de uma década desse projeto que nasce o Portal de Dramaturgia, um espaço que fortalece a difusão da escrita teatral brasileira pelas vias expandidas da virtualidade. Cartografar autores e autoras de teatro, dispor esse mapa de modo acessível e possibilitar pontes de contato nacionais e internacionais são os objetivos primeiros deste Portal.
 
Hoje, o site é composto por cem nomes da dramaturgia brasileira contemporânea. Para a escolha desses nomes, apostar numa curadoria formada por  pesquisadoras (um corpo majoritariamente feminino) de diferentes regiões do país foi um modo de, desde já, desestabilizar o retrato feito pela maior parte da mídia quando se trata do teatro brasileiro, dando sempre mais visibilidade aos artistas do Sudeste. A cada dupla de curadoras, cinco duplas no total, coube o mapeamento de uma das regiões do país e, mais tarde, a seleção dos nomes que comporiam o Portal. Nesse processo, coube a mim ouvir e acolher as singularidades de cada região, que vão do número de dramaturgos em atividade aos seus modos de produção artística, passando pelas estéticas e poéticas mais evidentes, e mediar as complexas questões decorrentes daí para afinar os critérios de seleção. Em nenhum momento, nem eu nem as curadoras desse projeto, achamos que esse processo resultaria em uma lista definitiva da dramaturgia brasileira contemporânea. A tentativa nunca foi essa. Escolhido o recorte de autores e autoras atuantes nos últimos dez anos, buscamos um mapa consistente, mas não escapamos das irregularidades. Qualquer curadoria é sempre um enquadramento, por onde, inevitavelmente, escapam algumas paisagens. Apesar disso, aqui, tenho a impressão de que a moldura tratou de alargar o que se vê sobre a dramaturgia brasileira. A lista passa por todos os estados do Brasil, por artistas de diferentes corpos, cores, contextos, gerações, trajetórias, estilos e modos de trabalho. A própria ideia de dramaturgia ganha sentidos distintos ao longo do catálogo. No fundo, o que especialmente me interessou foi perceber, através da escrita teatral, as diferentes significações que esses artistas deram e dão à experiência de vida no Brasil do início do século XXI.
 
Em tempos tão difíceis para a cultura do país, sob um ponto de vista sobretudo político, inaugurar uma plataforma dessa natureza é um gesto de resistência e esperança; é um reconhecimento da importância daqueles e daquelas que se dedicam à elaboração poética e estética da vida e ao pensamento sensível e crítico sobre o mundo; é um desejo de que esses dramaturgos e dramaturgas encontrem ainda mais eco, dentro e fora do Brasil.

curadoria regional

centro-oeste

Carin Louro (MS/PR) é artista da cena, produtora cultural, tradutora e pesquisadora. Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Traduziu, em parceria com Andre Benatti, as peças Entonces Alicia cayó, Vacas, Geni y el zepelin e Será Martes, publicadas nas edições de 2017 e 2018 do Periférico: dramaturgias latino-americanas.

Glauber Coradesqui (DF/RJ) é pesquisador e artista da cena, professor do curso de Teatro do Instituto Federal Fluminense. Doutor em Arte pela Universidade de Brasília, é autor dos livros Canteiro de obras: notas sobre o teatro candango (2012) e Experiência e mediação de espetáculos (2018).

O Centro-Oeste é uma divisão política recente que sobrescreve a história de territórios indígenas ocupados, explorados e urbanizados violentamente desde o período colonial. O Centro-Oeste, portanto, não pode existir fora de um gesto de apagamento. Esta curadoria se inscreve como uma contradição.
 
A denominação oficial dos territórios atuais como região Centro-Oeste se deu por decreto no ano de 1969. O último ajuste em sua divisão política – que hoje conta com três estados e o Distrito Federal – deu-se em 1985, após a divisão do estado de Goiás para dar origem a Tocantins (pertencente à região Norte) e a divisão do estado de Mato Grosso para dar origem a Mato Grosso do Sul. Sem saída para o litoral e considerada a região mais interiorana do país devido a esta particularidade geográfica, é a segunda maior em extensão territorial. Faz fronteira com todas as demais regiões brasileiras e inclui os biomas da floresta amazônica, do pantanal e do cerrado; é mato, chalana e onça. Esta curadoria se embrenha no interior profundo.
 
A última onda do processo de ocupação do Centro-Oeste, estimulada em grande parte pela transferência da capital federal para Brasília em 1960, favoreceu o desenvolvimento artístico e expôs as contradições do sistema de eixo criado em torno das produções ditas nacionais. A criação de secretarias ou fundações de cultura, bem como dos cursos de graduação em Artes Cênicas, muda o cenário da formação profissional, tanto livre quanto técnica e acadêmica, e reescreve certa mitologia de deslocamento predestinada ao artista dito regional. Ainda que sem cursos especializados em dramaturgia, a Universidade de Brasília, Universidade Federal da Grande Dourados, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Federal de Mato Grosso, Universidade Federal de Goiás, a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, a MT Escola de Teatro e o Espaço Cultural Renato Russo fomentaram a possibilidade de compartilhar saberes do fazer teatral, da produção e da circulação em artes cênicas no próprio território. Esta curadoria duvida do sistema de poder implícito nos termos regional e nacional.
 
Outro aspecto da formação artística na região que reflete no resultado da curadoria apresentada é o caráter autodidata dos dramaturgos e das dramaturgas selecionadas, que carregam em suas práticas a tradição do teatro amador, do teatro de grupo e da cultura popular. Criando para diversas frentes, em sua maioria, além de escrever, também atuam, dirigem, pesquisam, dão aula, produzem. Há, também, a presença de diferentes gerações convivendo e produzindo no mesmo recorte de tempo definido aqui como contemporâneo – o que resultou em uma proposta curatorial com textos escritos em contextos e processos muito diversos entre si e a indicação tanto de artistas da dita nova geração quanto de artistas que se confundem com a própria identidade da dramaturgia naquele território. Esta curadoria sublinha a resistência de gerações pioneiras.
 
Nossa pesquisa teve como ponto de partida o levantamento de dados obtidos em editais e premiações dedicadas à criação dramatúrgica, bem como em publicações editoriais lançadas de forma independente desde 2010. No entanto, foi a partir da leitura das obras e da série de conversas com as autoras e os autores na grande rede de contatos, que se embrenhou pelos interiores de cada estado, que os aspectos éticos e estéticos de cada processo se mostraram relevantes no desenho da nossa curadoria. Nos esforçamos em investigar não somente as produções das(os) artistas inseridas(os) no circuito das capitais e centros urbanos, ainda que na seleção final elas estejam em maior número, mas tentamos ressaltar também o experimentalismo das(os) artistas centro-oestinas(os) em contradição aos estereótipos comumente associados à cultura agro e à música sertaneja. Vimos nessas dramaturgias reflexões na busca por uma identidade estética e por um chamado às questões de cunho decolonial que trazem ao debate a produção fora dos considerados grandes eixos culturais. Esta curadoria experimenta riscos de decolonialidade.
 
A dramaturgia produzida na região Centro-Oeste nos últimos 10 anos, em grande parte, está atrelada às demandas dos processos criativos e aos anseios de grupos e artistas de posicionar a sua voz, sua autoria. Com um olhar transversal, buscamos reunir nomes que constituem, de algum modo, a diversidade das propostas dramatúrgicas em termos de pesquisa artística, de estrutura formal e de temáticas. Neste sentido, nos deparamos com escritas que se produzem em meio aos questionamentos acerca do território, das realidades indígenas, do feminismo negro, da perspectiva e da presença da mulher, da travestilidade. São diálogos, manifestos, palestras-performances, personagens, vozes, jogos que investigam os diversos aspectos da palavra em cena. Esta curadoria entende a diversidade como condição, e não desvio.
 
Este processo de curadoria nos fez revisitar, repensar o território e o nosso chão de origem artística, como uma sul-mato-grossense e um mineiro candango com múltiplos trânsitos que somos. O ato de olhar para o que é produzido no interior do Brasil abre um leque de discussões sobre a produção teatral e dramatúrgica no país como um todo, pois evidencia as desigualdades que operam na distribuição de processos formativos, de propostas editoriais e de incentivos culturais pelo território. O exercício de pesquisar e selecionar diferentes formas de pensar e criar dramaturgia ativou em nós um interesse de debater a própria ideia de curadoria como uma experiência do instante – o que pressupõe que esses trabalhos juntos em um espaço/contexto produzem um discurso que não se restringe a cada obra isoladamente. Uma exposição, uma antologia, um festival, um portal são experiências de corpos e obras ocupando o mesmo espaço-tempo. Este é o nosso espaço-tempo: uma espécie de comunidade, de rede, que apresenta e abre um ou mais instantes, presentes e futuros, da produção dramatúrgica do Centro-Oeste. Esta curadoria é tembiasakue, ko’anga gua ha tenondegua.

curadoria regional

norte

Bene Martins (PA) é professora associada-pesquisadora da Universidade Federal do Pará. Possui  doutorado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e pós-doutorado em Estudos do Teatro pela Universidade de Lisboa. Atua no Programa de Pós-Graduação em Artes e na Faculdade de Dança, coordena projetos de pesquisa voltados à dramaturgia e é editora de livros do acervo de peças teatrais e atos de escritura. Desde 2010, realiza o Seminário de Dramaturgia Amazônida.

Gorete Lima (AM) é arte-educadora, arte-terapeuta e atriz-produtora da Cia. Teatral  A Rã Qi Ri. Doutora em Ciências da Educação pela Universidad de la Integración de las Américas, Paraguai, mestre em Sociedade e Cultura pela Universidade Federal do Amazonas, especialista em Teatro e Educação pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em Tecnologias Educacionais pela PUC-Rio e em Arteterapia em Educação e Saúde - Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro.

Ao sermos convidadas para participar da curadoria de dramaturgos(as) da região Norte, aceitamos o desafio sabendo não seria uma tarefa fácil, ao contrário, além de trabalhosa, é condoída, pois a reponsabilidade de selecionar um número determinado de dramaturgos(as), dentre muitos, é escolha dificílima. Procuramos seguir as orientações da coordenação geral do Portal de Dramaturgia e, naturalmente, deixamos um número maior ainda fora desta primeira indicação. Aceitamos, ainda, fazer parte dessa equipe, porque a iniciativa de construir um portal de dramaturgia é fundamental para que o Brasil conheça o trabalho de tantas pessoas que produzem muito e, a maioria, está fora das plataformas ou meios de divulgação, publicação e montagens nacionais. De modo que ressaltamos a importância de todos nós, representantes das cinco regiões brasileiras, parabenizamos a iniciativa da criação do Portal, e desejamos que esta seja apenas a primeira etapa de uma busca rica e incessante para alimentar as informações necessárias à continuidade deste trabalho. Os(as) dramaturgos(as) brasileiros(as) de todas as regiões merecem visibilidade e reconhecimento.
 
A região Norte é formada por sete estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Em todos os estados existem inúmeros dramaturgos(as) em atividade, escrevendo diversos tipos de dramaturgia, da clássica às contemporâneas. Além dos falecidos que deixaram obras importantes para o teatro brasileiro, Nazareno Tourinho e Ramon Stegmann, estes dois com obras completas publicadas pelo Projeto Memórias da Dramaturgia Amazônida: Construção de Acervo Dramatúrgico, destaca-se  Levi Hall de Moura, com obra completa publicada em 2022. Antônio Tavernard, Bruno de Menezes, Luiz Otávio Barata, Henrique da Paz, com publicações avulsas, e/ou arquivadas em obras raras, entre outros nomes a serem encontrados ainda.
 
E mais, ressaltamos os(as) veteranos(as) e os(as) jovens dramaturgos(as) com produção contínua em Belém do Pará e em outros estados do Norte, os quais colocam a escrita dramatúrgica em circulação nacional, a exemplo da recente premiada Angela Ribeiro (Prêmio Shell, 2021), Paulo Faria, Denio Maués, Raimundo Alberto de Oliveira, Rudinei Borges, Paloma Amorin e Francisco Carlos – falecido recentemente. Dos contemporâneos em atividade, além dos inseridos no Portal, destacamos João de Jesus Paes Loureiro, Walter Freitas, Saulo Sisnando, Ailson Braga, Adriano Barroso, Adriana Cruz, Bárbara Gomes, Fábio Limah, Haroldo França, Bárbara Gibson, Ingrid Gomes, Mailson Soares, Alana Lima, Ana Carolina, dentre outros(as). Alguns dos(as) autores(as) trabalham em grupos consolidados ou grupos pontuais, que, por vezes, atendem determinada demanda e não dão continuidade às montagens de peças. Vale ressaltar que, durante a pandemia que ainda vivemos, vários grupos se reinventaram e apresentaram suas peças de modo virtual, fomentados por leis de incentivo emergencial. Essa será a herança positiva desse período. Toda essa produção está registrada e servirá de aporte às futuras pesquisas acadêmicas.
 
Outra vertente forte na região Norte são os grupos de teatro responsáveis por um movimento artístico-socio-cultural-político muito intenso, como exemplo dos mais antigos – alguns ativos há mais de 40 anos, outros que colaboraram muito para a formação de um pensamento artístico-crítico, ainda presente nos novos grupos em Belém do Pará – temos: Grupo Cena Aberta, (Luís Otávio Barata, Walter Bandeira, Margareth Refskalevzky, Zélia Amador de Deus), Grupo Palha (Paulo Santana), Grupo Experiência (Geraldo Sales), Grupo Maromba (Ramon Stergmann, Walter Freitas), Grupo Gruta (Henrique da Paz), Grupo Cuíra, (Wlad Lima, Olinda Charone, Edyr Proença, Zé Charone). Há outros grupos ainda em atividade: Palhaços Trovadores (Marton Maués), In Bust Teatro com Bonecos (Adriana Cruz, Paulo Nascimento, Aníbal Pacha, Cristina Costa), Grupo Teatro de Apartamento (Saulo Sisnando), dentre outros.
 
Ficou evidente nessa curadoria que a maioria dos(as) dramaturgos(as) se fixam em grupos e companhias, onde criam seus textos e, na maioria das vezes, também são encenados, como: AACA-Arte&Fato (Douglas Rodrigues), Ateliê 23 (Taciano Soares), Cacompanhia (Jean Palladino), Casarão de Ideias (João Fernandes), Cia. de Atores Escalafobéticos (Wallace Abreu), Cia. Teatral A Rã Qi Ri (Nereide Santiago), Cia. Teatro Éden (Jorge Bandeira), Cia. Vitória Régia (Nonato Tavares), Cia. Metamorfose (Socorro Andrade), Coletivo Erva Daninha (Paulo Tiago), Espatódea Trupe (Arlisson Cruz), Grupo Jurubebas de Teatro (Felipe Maya Jatobá), Cia. Teatral Azuarte (Adailson Veiga), Projeto Casa Taua-Caá (Iran Lamego),  Souflé de Bodó Co. (Francis Madson), Um Teatro Produções (Tércio Silva), UTC -4 (Dyego Monnzaho) e, por fim, o Teatro Experimental do SESC (TESC-SESC-AM), dirigido por Márcio Souza, fundado em 1968, grupo que permaneceu ativo até 1982 e, após 21 anos, retornou em 2003, mantendo-se até 2016.
 
Outros dramaturgos autônomos têm suas peças montadas aleatoriamente, como é o caso do dramaturgo Sergio Cardoso. Em virtude da pandemia de Covid-19, surgiu a necessidade de fomentar as atividades artísticas, tentando minimizar o impacto sofrido por esses artistas. Assim, foram disponibilizados editais emergenciais, a exemplo da Lei Aldir Blanc. São esses apoios financeiros que motivam o surgimento de novos dramaturgos, como Narda Teles. Sua dramaturgia é voltada para a infância e juventude, cuja principal temática é a Amazônia e suas lendas. No Amazonas, no Pará e demais estados, a dramaturgia transita por vários estilos, que vão do teatro épico à palhaçaria, do teatro de revista ao teatro infantojuvenil, das narrativas fantásticas aos teatros do real.  As temáticas são variadas: mitos e lendas da Amazônia, vidas e conflitos indígenas, figuras e elementos da cultura popular como o boi bumbá, questões existenciais, problemáticas ambientais, investigações históricas, culturas queer, entre outros disparadores das tramas cênicas. Os modos de produção são também diversos, que vão de bioescrituras a adaptações literárias.
 
O que ocorre com grupos de teatro de Belém e Manaus é mais ou menos o que acontece com grupos dos outros estados da região, ressaltamos que, por questão de tempo, focamos mais nas capitais, ciente de que existem trabalhos significativos nos municípios dos nossos estados. Essa é mais uma lacuna na história do teatro da região Norte. No estado do Amapá, por exemplo, existe aproximadamente 30 grupos na ativa. Destes, os mais antigos são Grupo Arena (Amadeu Lobato) e Grupo Língua de Trapo (Disney Silva), ambos há mais de 30 anos em atividade no estado. Quanto aos outros estados, ainda não temos dados concretos, mas ousamos afirmar que existem muitos grupos, alguns permanecem, outros saem de cena. Esta cartografia dos grupos de teatro, em todos os estados da região Norte, precisa ser visibilizada, para constar em espaços, como este do Portal de Dramaturgia.
 
Esta curadoria procurou ouvir e ler as vozes desses(as) dramaturgos(as) e apresentar, ainda que parcialmente, um recorte que representasse a região Norte. Esses títulos e fragmentos de peças inseridas no Portal de Dramaturgia ganharão visibilidade e rumos autônomos, isto é, o Portal cumprirá um dos seus objetivos, o de construir pontes entre os autores e aqueles que se interessam pela leitura e produção teatral.

curadoria regional

nordeste

Pollyanna Diniz (PE/SP) é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda e mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Idealizadora e editora do site Satisfeita, Yolanda?. Atuou como crítica convidada em festivais como Mirada, MITsp, Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo e Janeiro de Grandes Espetáculos.

Laís Machado (BA) é artista do corpo transdisciplinar, alárínjó e feminista. É uma das fundadoras da Plataforma ÀRÀKÁ e idealizadora do Fórum Obìnrín – Mulheres Negras, Arte Contemporânea e América Latina. Como artista, participou de diversos festivais e residências em Salvador, São Paulo, Santos, Belo Horizonte, Heidelberg, Lisboa, Berlim, Düsseldorf e New Smyrna.

Precisamos começar este texto com algumas confissões. Uma delas é que a ideia de mapear dramaturgos no Nordeste nos gerou sentimentos contraditórios. À primeira vista, era uma tarefa incrível: a oportunidade de reunir trajetórias e produções de artistas que impactam as nossas próprias histórias e vivências nas artes da cena. Autores que não necessariamente conseguiram alcançar repercussão “nacional” – aspas, muitas aspas, porque essa é uma questão que gostaríamos de discutir – e que poderiam ter o acesso às suas existências e obras facilitadas pelo Portal.
 
A empolgação inicial com as possibilidades que esse ajuntamento seria capaz de promover, desde a circulação das obras entre grupos de outros cantos do país até os encontros e intercâmbios entre esses dramaturgos, logo esbarrou no choque de realidade. Como compor uma lista de dramaturgos, dramaturgas e dramaturgues de nove estados, levando em consideração a dimensão territorial do Nordeste? Mesmo que não houvesse a pretensão de “dar conta” da produção da região, o que assumimos de largada, havia muitos aspectos a serem considerados e debatidos, na tentativa de não incorrer em erros e na reprodução de sistemas de poder que referendam alguns e excluem uma grande maioria. 
 
Nessa trajetória nos últimos meses, muitas vezes encaramos as frustrações do nosso próprio desconhecimento e a incoerência escancarada na prática: temos mais contato com a produção de São Paulo do que de estados como Piauí e Alagoas. Os motivos pelos quais isso acontece geraram muitas discussões. Por exemplo: o que pode ser considerado teatro nacional? Como lidar com a nomenclatura “teatro nordestino”? Por que tantas vezes os artistas e grupos precisam ser reconhecidos no Sudeste para serem “validados” nas suas próprias cidades? Como não repetir exclusões e disparidades dentro do próprio Nordeste ou dentro do mesmo estado, levando em conta capital-interior? Fomos atravessadas por muitas questões.
 
Mas, para tentar minimizar as distâncias, as ausências e as fissuras, nós, uma baiana e uma pernambucana, decidimos que essa lista seria um trabalho compartilhado. De início, a escolha pelo assistente de pesquisa já deveria incluir outro estado nesse caldeirão. E assim chegou Yago Barbosa, do Ceará. Mas ainda era pouco. Iniciamos então um trabalho de formação de rede: entramos em contato com artistas de todos os estados. Foram muitas mensagens e conversas que nos contaram sobre a produção dos estados, as potências e as dificuldades, os principais grupos, dramaturgos representativos, atividades de formação, escolas, prêmios, programas de publicação e as muitas deficiências nesse sistema cultural.
 
Estávamos buscando dramaturgos que tivessem uma produção consistente há pelo menos 10 anos, que se identificassem com um teatro de pesquisa, interessados em refletir sobre o próprio fazer dramatúrgico. E, como curadoras, havia o desejo de que os artistas do estado se sentissem representados pelos nomes que figurariam no Portal.
 
Trabalhamos ainda com critérios que estabelecemos como inegociáveis na composição dessa lista: a presença de pessoas negras, de mulheres dramaturgas cisgênero e transgênero, de dramaturgos dos interiores dos estados e não só das capitais. Tanto quanto possível (e não foi uma tarefa fácil), gostaríamos de contemplar pessoas com deficiência e indígenas. Olhar com atenção a produção desses artistas evidencia a reprodução das disparidades coloniais dentro da própria região Nordeste, o que consideramos importante na nossa prática curatorial e de pesquisa.
 
Chegamos então aos seguintes nomes: Bruno Alves e Daniela Beny, do estado de Alagoas; Aldri Anunciação, Bárbara Pessoa, Diego Araúja, Gildon Oliveira, Paula Lice e Romualdo Lisboa (Teatro Popular de Ilhéus), do estado da Bahia; Altemar di Monteiro, Jéssica Teixeira, Noá Bonoba, Rafael Barbosa e Rhamon Matarazzo, do Ceará; Lauande Aires e Marcelo Flecha, do Maranhão; Paulo Vieira, da Paraíba; Djaelton Quirino, Giordano Castro, Luciana Lyra, Newton Moreno, Samuel Santos e Sophia Williams (Coletivo Agridoce), de Pernambuco; Ísis Baião, do Piauí; Henrique Fontes, Juão Nyn e Romero Oliveira, do Rio Grande do Norte; e Euler Lopes e Virgínia Lúcia, do estado de Sergipe.
 
A formação da rede de artistas que nos ajudou a chegar a essa lista foi a estratégia que encontramos para minimizar o efeito da ausência de mecanismos de manutenção da memória do teatro e especialmente da dramaturgia no Nordeste. Essa questão impacta diretamente o trabalho de pesquisa cultural na região: há que se investir tempo e energia para resgatar nomes de artistas que se encontram fora dos diversos “centros”, seja por questões raciais, de classe, de gênero ou de geografia. Em muitos casos, esse trabalho é dificultado pela distância histórica, o que acrescenta outras camadas de complexidades.
 
Neste sentido, o Portal é uma tentativa de insurgência contra o apagamento desses artistas do presente, tentando quebrar um ciclo que se repete, de gerações que precisam “resgatar” as anteriores invisibilizadas. Ainda há muito o que se fazer nesse terreno da memória, do passado e do presente, mas é importante registrar iniciativas como o portal Melanina Digital, plataforma colaborativa de dramaturgias negras contemporâneas, idealizada pelo dramaturgo Aldri Anunciação, e os Mapas Culturais de alguns estados, especialmente o do Ceará, que possui um banco de dados abrangente e com informações completas.
 
No processo de aprofundamento sobre a trajetória dos dramaturgos e suas obras, percebemos uma característica que se repetia em todos os estados: boa parte dos dramaturgos da nossa lista começou a escrever por uma necessidade prática. Eram atores ou diretores que não sentiam desejo de levar à cena textos disponíveis em domínio público, que não dispunham de financiamento que pudesse dar conta de negociações de direitos autorais, ou que simplesmente nutriam a ambição de montar peças a partir das suas próprias experiências e discursos. Muitas vezes, esses artistas demoraram para se perceberem dramaturgos e até para assinarem seus textos, mas ao longo dos anos desenvolveram suas poéticas.
 
Nesse aspecto, os grupos de teatro são fundamentais para a produção dramatúrgica do Nordeste. Coletivos que apresentam diversas maneiras de funcionamento e organização, modos de produção específicos, mas têm como pressuposto uma atividade de pesquisa continuada e, por isso, servem tanto como espaço formativo quanto de experimentação artística. Boa parte da dramaturgia contemporânea do Nordeste foi elaborada no âmbito dos grupos e companhias, como parte do processo de criação colaborativa.
 
Nas dramaturgias também encontramos confluências, embora tenhamos a noção de que o distanciamento pode acrescentar novas miradas a partir dessa lista. Uma dessas recorrências é o mergulho no que poderíamos chamar de teatro político, um interesse dialético (ou mesmo radical) diante das estruturas políticas de opressão. As circunstâncias políticas, econômicas e sociais da região e o desejo de tratar dessas realidades são algumas das razões que movem os artistas. 
 
Mas as tentativas de traçar paralelos nesse mapeamento não aplainam a diversidade de poéticas que encontramos no exercício de leitura das dramaturgias escritas por autores do Nordeste. Dramaturgias múltiplas, que resistem no contexto de uma nação destroçada pelo luto coletivo, pela truculência da violência colonial, pela ausência de políticas públicas de cultura e pela má distribuição dos recursos em um país de dimensões continentais. Ainda assim, ampliam a discussão sobre o que é ser artista, do Nordeste do Brasil, propondo leituras constantes de humanidade no exercício de construção das suas próprias identidades.

curadoria regional

sul

Camila Bauer (RS) é diretora teatral, dramaturga e professora de dramaturgia do Departamento de Arte Dramática e da Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora pela Universidade de Sevilha e pela Universidade Livre de Bruxelas, com estâncias na Espanha, França e Bélgica. Pesquisa dramaturgia contemporânea e poéticas do espetáculo, além de dirigir o Coletivo Projeto GOMPA.

Ligia Souza (PR/SP) é dramaturga, roteirista e pesquisadora.  Doutora em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, mestre em literatura pela Universidade Federal do Paraná e bacharel em artes cênicas pela Universidade Estadual do Paraná. Fundadora da la lettre – espaço de criação. Coordenadora do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná. É autora de penélope, o nome das coisas, outros sons, para ler aos trinta e outros textos.

Estabelecer um pensamento curatorial para pensar a dramaturgia brasileira é sempre algo complexo, implicando necessariamente na escolha de um recorte. Analisando a escrita feita no Sul do país nos últimos 10 anos, optamos por priorizar dramaturgues ativos nos três estados, com uma produção continuada e que estejam chegando aos palcos tendo contato direto com a vida cultural da região, além de se destacarem por pesquisas no âmbito da linguagem e da experimentação. Neste sentido, enfocamos em uma diversidade de linguagens, valorizando os diferentes procedimentos de escrita, que vão desde a chamada escrita de gabinete até a escrita em processo colaborativo, recorrente em criações de teatro de grupo, que vem impulsionando a produção dramatúrgica no Sul do Brasil.
 
O processo de seleção passou por dois processos distintos. Primeiramente foi realizado um levantamento abrangente com nomes diversos, mais de 100, que passaram por artistas consolidados no cenário atual à iniciantes no labor dramatúrgico, contemplando nomes das capitais, litorais e interiores dos estados. Posterior a isso, refletimos a partir da leitura de textos, da análise de contextos de produção e, principalmente, a partir da experiência empírica de nossas atuações, que abrange a produção, a pesquisa e a pedagogia na área dramatúrgica. O olhar curatorial é o resultado de uma prática contínua de fruição e reflexão acerca da dramaturgia produzida no Sul.
 
Nesse processo, concluímos que o pouco fomento e incentivo à dramaturgia de modo continuado faz com que grande parte da produção autoral esteja vinculada ao teatro de grupo, como é o caso de coletivos como Errática, Cia. Stravaganza, Projeto GOMPA, Pretagô, Cia. IncomodeTe, Bando de Brincantes, Grupo Oigalê, Grupo Cerco, Grupo Caixa Preta, UTA (Usina do Trabalho do Ator), Cia. Rústica, Teatro Sarcáustico, ERRO Grupo, Cia. Téspis, Cia. Brasileira de Teatro, CiaSenhas de Teatro, Selvática Ações Artísticas, dentre outros grupos que vêm priorizando a escrita autoral. Assim, a maioria dos dramaturgos atuantes na região Sul e que estão neste Portal desenvolvem parte importante de seus trabalhos junto a coletivos (e impulsionado por eles). É o caso de Francisco Gick, Pedro Bertoldi, Diones Camargo, Fernando Kike Barbosa e Viviane Jugueiro, do Rio Grande do Sul; André Felipe, Max Reinert, Pedro Bennaton e Luana Raiter, de Santa Catarina; Sueli Araújo, Marcio Abreu, Leonarda Gluck, Fátima Ortiz, Francisco Mallmann e Carlos Canarin, do Paraná.
 
Cabe citar também dramaturgos que acabaram não entrando para o Portal e que criam junto a seus coletivos – ou visando levar suas obras à cena enquanto atores ou diretores –, como é o caso de Silvana Rodrigues, Patrícia Fagundes, Nelson Diniz, Liane Venturella, Marcos Contreras, Elisa Lucas, Patrícia Silveira, Dedy Ricardo, Altair Martins, Paulo Berton, Fernanda Moreno, Antonio Cunha, Sulanger Bavaresco, Luiz Felipe Leprevost, Paulo Biscaia, Olga Nenevê, Marcelo Bourscheid, Alexandre França, Enéas Lour, Maurício Vogue, Edson Bueno, Maíra Lour, tendo seu percurso ligado à produção coletiva, colaborativa. No livro À sombra do vampiro – 25 anos de teatro de grupo em Curitiba, organizado pelo Prof. Dr. Walter Lima Torres Neto, encontramos um levantamento que evidencia a produção de teatro de grupo, pontuando também as dramaturgias originais por eles produzidas. Merece relevo também o site Dramaturgia de Mulheres: palavra como existência e resistência, organizado por Natasha Centenaro, que busca reunir e dar visibilidade para a dramaturgia escrita por mulheres no Rio Grande do Sul. Por fim, o artigo “Renovação formal da dramaturgia em SC”, escrito pelos pesquisadores Afonso Nilson e Stephan Baumgartel para o site Teatro Jornal, propõe uma reflexão sobre a dramaturgia produzida no estado. 
 
Além disso, nomes que estão vinculados à produção fora das capitais fizeram parte do levantamento curatorial. No Paraná destacamos a cidade de Londrina, conhecida pela relevância do Festival FILO e do atuante curso de licenciatura em Teatro da Universidade Estadual de Londrina, que é o berço de nomes de relevância nacional, como o escritor Renato Forin, Maurício Arruda Mendonça do Armazém Companhia de Teatro, e Mário Bortolotto do Teatro Cemitério de Automóveis. No que tange aos dramaturgues de Santa Catarina, há nomes de cidades do interior como Paulo Zwolinski (Jaraguá do Sul) e Gregory Haertel (Blumenal). Outro dado interessante é o processo de intercâmbio de nomes que, nascidos no estado, migram para outros estados, como é o exemplo de Martina Sohn Fisher e Andrew Knoll. Já no Rio Grande do Sul, há um movimento de dramaturgues do interior para a capital. Sua grande maioria vai para Porto Alegre em busca de oportunidades para dar vazão cênica às suas produções escritas, onde o mercado, apesar de escasso, é um pouco mais aquecido. Essa é uma característica que se aplica aos outros dois estados, mas que aparece com mais ênfase no Rio Grande do Sul.
 
A precariedade de incentivo à dramaturgia no Sul do país faz com que grande parte da produção venha de colaborações com grupos, sendo ainda difícil pensar o papel do dramaturgo como uma profissão economicamente autossustentável. No Rio Grande do Sul, o fomento para a área da dramaturgia é precário, para não dizer inexistente. Já houve importantes prêmios, como o Prêmio Carlos Carvalho – Concurso de Dramaturgia e o Prêmio Ivo Bender de Dramaturgia, ambos extintos, os Prêmios Açorianos e Tibicuera de Dramaturgia, extintos desde 2020, bem como o Prêmio FAC Serafim Bemol, voltado à montagem de dramaturgia gaúcha, que teve apenas uma edição, em 2019. 
 
No Paraná, algumas iniciativas foram importantes para contribuir com a produção e divulgação das produções. Destacamos o Prêmio Oraci Gemba, realizado pela Fundação Cultural de Curitiba. O Prêmio teve início em 2007 e publicou cinco volumes com mais de 20 dramaturgias, que contemplavam tanto dramaturgos expoentes como ícones da dramaturgia curitibana, entre eles Enéas Lour, Paulo Biscaia e Silvia Monteiro. Recentemente, com a aprovação da Lei Aldir Blanc durante a pandemia de Covid-19 no Brasil, foi realizado o prêmio Outras Palavras, que contemplava escritores no estado do Paraná. Na categoria dramaturgia, 30 autores foram premiados, como Dimis Soares, Ligia Souza, Olga Nenevê, Val Sales, Alan Norões, Regina Bastos e outros. Neste contexto, em 2020 foi criado também o selo la lettre, dos artistas Ligia Souza e Pablito Kucarz, que publica e distribui livros com textos dramatúrgicos.
 
De forma mais abrangente, os editais de cultura do estado do Paraná e da cidade de Curitiba de certa forma contemplam projetos que encenam e publicam dramaturgia de autores atuantes do Paraná. Desta forma, conseguimos encontrar iniciativas que, além de divulgar as obras, produzem espaços de discussão e debate sobre o fazer dramatúrgico. Destacamos os projetos Leituras ¾ do grupo Antropofocus, que lançou um chamamento nacional de textos de comédia, bem como o projeto CiaSenhas Aciona: Dramaturgas em Cena, que também lançou um edital nacional de dramaturgias escritas por mulheres. No Rio Grande do Sul, a criação do Coletivo As DramaturgA, impulsionado por Patrícia Silveira, buscou dar visibilidade à produção escrita por mulheres. O coletivo publicou uma série de textos de 13 autoras de diferentes gerações, lançada pela EDIPUCRS.
 
Quando pensamos em formação em dramaturgia, há no Paraná mais de cinco universidades públicas e particulares que oferecem cursos de artes cênicas com diversas habilitações. Porém, a formação em dramaturgia é realizada principalmente em projetos de formação não acadêmica. O projeto mais conhecido e longevo é o Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná, que possui mais de 10 anos de atuação na cidade de Curitiba, com ações pontuais também em cidades do interior do Paraná. O Núcleo já passou pela coordenação de diversos autores com repercussão nacional. Atualmente, oferece aos participantes abordagens históricas, teóricas e práticas de construção de dramaturgia, com experimentação das obras através de performances e leitura cênica, além da divulgação através de publicações. Outras instituições também promovem cursos, oficinas e projetos pontuais de dramaturgia na capital e no interior, como o SESC Paraná, o Centro Cultural Teatro Guaíra, a Biblioteca Pública do Paraná e outros.
 
No Rio Grande do Sul, a formação em dramaturgia enquanto ensino regular é bastante recente. A habilitação em Escrita Dramatúrgica, criada no curso de Teatro do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi criada em 2019, tendo sua atenção voltada para a formação de dramaturgues. É uma das poucas iniciativas no âmbito universitário pensada exclusivamente para a formação regular em escrita dramática. Na Universidade Federal de Pelotas, cabe destacar as ações do grupo de pesquisa Teatro: Histórias e Dramaturgias, coordenado por Fernanda Vieira Fernandes, que realiza regularmente leituras dramáticas, buscando visibilizar a escrita contemporânea. Há ainda alguns grupos de estudo e movimentos neste sentido. Em Porto Alegre, por exemplo, temos o Grupo de Estudos em Dramaturgia, coordenado por Diones Camargo. O coletivo realiza encontros de troca e exercícios de escrita, pensando em estratégias de viabilização da profissão na cidade e abarcando também a dramaturgia na dança e em espaços expositivos. 
 
Em Santa Catarina, temos no curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina o eixo de Escrita Dramática, impulsionado pelo Núcleo de Estudos em Encenação Teatral e Escrita Dramática (NEEDRAM), coordenado por Paulo R. Berton, corroborando um movimento de escrita dramática dentro da academia. No mesmo sentido, o professor Stephan Baumgartel coordena na Universidade Estadual de Santa Catarina o Laboratório de Escritas Teatrais, com encontros semanais para produção, leitura e reflexão de textos.
 
Nas dramaturgias analisadas do Sul, nota-se uma forte inclinação a uma textualidade mais performativa, que foge de uma estrutura discursiva linear da ação. Há uma forte tendência à ruptura da fábula, à fragmentação do tempo, do espaço e do indivíduo. Igualmente, há uma reiteração de um tipo de teatro que surge da relação entre os atores e os dramaturgos em sala de ensaio, sendo ações verbais e físicas escritas por seus corpos e para eles, com uma performatividade que se calca no ator e na exploração da palavra. Há, também, diversos coletivos trabalhando com espaços alternativos, com música, com o uso de tecnologia, gerando interferências na própria estrutura dramatúrgica.
 
Por outro lado, vale ressaltar que o movimento recente sobre a escrita no Sul do país foge ao maneirismo elitista da escrita. Dramaturgues de origens e formações diversas estão interessados em relações decoloniais com a palavra, debruçando-se em investigações performativas nas quais o corpo é colocado como o foco da experiência escrita. A oralidade é um traço forte das escritas, pois é ela que abre as possibilidades de criação de outros imaginários: narrativas de mulheres, afro-brasileiras, periféricas, latino-americanas, LGBTQIA+ e outras maiorias menorizadas têm na palavra falada, na vocalidade, um dispositivo de criação que nega as imposições eurocêntricas da escrita. Neste sentido, a curadoria também tencionou dar espaço a essas narrativas que deflagram uma outra narrativa sobre o Sul do país. 
 
Por fim, o deleite e o desafio dessa curadoria foi reforçar a diversidade da produção dramatúrgica do sul do país, retirando dela a noção preconceituosa e recortada de uma elite masculina, branca e europeia. A produção dramatúrgica do Sul é plural, como uma forma de reafirmação das mil identidades brasileiras. A noção coletiva dessas escrituras e a construção de uma palavra carregada de conhecimento e experiência do corpo evoca a diversidade também de existências, de olhares sobre o mundo e de concepções sobre a própria ideia de humanidade. 

curadoria regional

sudeste

Guilherme Diniz (MG) é pesquisador e crítico teatral do site Horizonte da Cena (BH). É graduado em Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e mestrando em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da mesma universidade. É um dos produtores e consultores do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras.

Daniele Avila Small (RJ) é artista de teatro, crítica e curadora. Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, é idealizadora e editora da revista Questão de Crítica, além de presidenta da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IATC). É autora do livro O crítico ignorante: uma negociação teórica meio complicada, publicado pela editora 7Letras.

Fazer uma curadoria de dramaturgos e dramaturgas da região Sudeste do Brasil não é um trabalho desprovido de complexidade. O recorte geográfico, que envolve os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, marca uma série de desigualdades na relação com as demais regiões do país, mas, internamente, as diferenças também são profundas e violentas. Nem tudo são flores no chamado “Sul maravilha”.
 
Antes de mais nada, o processo nos demandou um debate sobre a noção de curadoria que pautaria as nossas escolhas. Tendo em vista a dimensão da produção teatral sudestina, o nosso recorte está longe de ser um mapeamento satisfatório, nem mesmo dá conta de vislumbrar um panorama justo. A ideia de curadoria com que trabalhamos não é a de uma oficialidade, nem de um ranking de “melhores” ou “mais importantes”. Curiosos e desconfiados, nos esforçamos para desarmar as armadilhas da noção de “qualidade” do mercado simbólico neoliberal do jornalismo cultural e das premiações de grandes empresas. A lista de artistas que reunimos traça um caminho de curvas sinuosas, uma topologia acidentada, uma ilha inquieta em um mar de doloridas ausências. Mais que confirmar consolidações, também estamos apontando manifestações intempestivas de um momento histórico demasiado turbulento para assinalar perenidades. Reunir esses nomes aqui é também uma forma de dizer que estamos de olho no presente e no futuro do teatro que essas pessoas estão remexendo.   
     
As paisagens dramatúrgicas desenhadas pela nossa curadoria são, em larga medida, atravessadas por radicais críticas à história do Brasil, escavando nesse processo não apenas as lacunas e apagamentos gerados pelos discursos oficiais, mas como as subjetividades, as identidades e os afetos são formados na dinâmica de um país que violenta memórias, imagens e testemunhos insubordinados. Neste sentido, o manejo de arquivos e depoimentos constitui um significativo traço de dramaturgias interessadas em repensar as temporalidades, recusando a eurocêntrica visão de uma cronologia linear e unívoca, retraçando relações outras entre memória e história. O passado aparece como problema e como combustível, como material dramatúrgico a ser revirado, ancestralidade a ser convocada, narrativas por indispor. As escritas de si se projetam nesta conjuntura não como uma exibição narcísica do eu (a noção burguesa de “homem universal”, ou seja, um eu individual, autocentrado e absolutamente racional, é contestada em muitos trabalhos dessa vertente), mas como uma chave de leitura do país (e do mundo) a partir das fissuras, das incompletudes, dos silêncios e das cicatrizes simbólicas e físicas cravadas nos corpos.
 
Nossos percursos curatoriais foram fortemente marcados pelo período pós-golpe de estado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, destituída de seu cargo em 2016. Interessava-nos visualizar os modos poéticos e éticos desenvolvidos pelas dramaturgias para lidar com esses tumores históricos. Entendemos que este fato político acirrou tensões, disputas, dores e injustiças sistematicamente produzidas no país. Por essas razões, a presença de dramaturgias produzidas por lideranças (políticas, culturais, acadêmicas, etc.) mostrou-se fundamental para o nosso olhar. Estamos no terreno de dramaturgias visceralmente implicadas nas convulsões de nosso momento histórico; criadores e criadoras que efetivamente “colocam a mão na massa”, atuando de modo determinante em seus territórios; textualidades emaranhadas em agudas discussões que cortam a formação do Brasil, encarando as suas chagas remotas e atuais.
 
Nossos olhares priorizaram artistas que, como quem levanta o braço e diz “tá comigo!”, com fome de jogo, assumem a responsabilidade pelas narrativas que fundamentam seus afetos e pelos movimentos teatrais de seus territórios, às vezes confluindo enfrentamento político, posicionamento ético e produção de imaginário simbólico de modo tão decisivo que não se pode separar os múltiplos aspectos de seu projeto de artista. Essas dramaturgias que chegam na vida e que se fazem em diálogo com o mundo são algo que nos interessa. Não à toa, apontamos artistas que se dedicam também ao ensino do teatro e da escrita dramatúrgica, que multiplicam saberes e viabilizam desejos, abrindo caminho para o exercício da imaginação. 
 
Neste sentido, a presença de algumas iniciativas que visam difundir, debater e produzir dramaturgias de maneira pública, revelam-se como catalisadores de experimentações e reflexões que adensam as autoralidades de grupos e de artistas independentes. O projeto Janela de Dramaturgia (BH) desde 2012 reatualiza e alimenta, continuamente, o cenário dramatúrgico contemporâneo, conjugando investigação formal e discussão estética. Embora fincado na capital mineira, a Janela de Dramaturgia se conecta com dramaturgos e dramaturgas de distintas localidades nacionais. Não obstante suas singularidades, a Segunda Preta (BH), a Segunda Crespa (SP) e a Segunda Black (RJ) são também exemplos de iniciativas potencializadoras de dramaturgias.  Nas “Segundas”, a pesquisa poética notadamente matizada por epistemologias, práticas culturais e narrativas negras se amalgama com um radical pensamento antissistema, incluindo suas estruturas de poder brancas, heteronormativas, sexistas e capitalistas. Estas ações, cada qual à sua maneira, sulcam possibilidades criativas em profundo diálogo com seus territórios, mobilizando agentes e grupos plurais, estabelecendo instigantes interlocuções com os públicos.
 
Por outro lado, percebemos a necessidade de olhar mais atentamente para os créditos de autoria nas encenações contemporâneas e no que tem se chamado teatro de grupo – especialmente quando não há consenso possível sobre a definição de teatro de grupo, ainda mais se considerarmos as escandalosas desigualdades socioeconômicas que marcam as trajetórias artísticas no país. Por que tantas vezes atribuímos um valor de horizontalidade aos processos colaborativos, quando apenas os nomes de quem está na direção e no crédito de “autor” são conhecidos? Quantos atores e atrizes têm sido autores e autoras das peças de seus grupos sem que as fichas técnicas de seus vários espetáculos nos permitam enxergar um lastro de experiência prática na lida com a criação textual? Sabemos que colaborar numa criação e arquitetar uma dramaturgia são trabalhos distintos, mas, ainda assim, nos perguntamos: como a noção de coletividade pode invisibilizar as autoralidades individuais? O quanto a figura de “autor teatral” (assim, no masculino singular, carregado de cisgeneridade e branquitude), enquanto dramaturgo de gabinete, imagem tão eficazmente plasmada no imaginário das artes da cena pela historiografia canônica e pela crítica moderna do teatro do Rio de Janeiro e de São Paulo, não está – ainda – nos impedindo de historiografar uma imensa presença de dramaturgas e dramaturgos no teatro brasileiro, autores e autoras no sentido amplo, para além do que aparece à primeira vista?
 
Historicamente, há tensos intervalos entre visibilidade e invisibilidade, entre o dito e o não dito, intervalos estes marcados por questões de classes, de gênero, de raça, de sexualidade, principalmente quando situados em territorialidades não centrais. Não podemos nos esquecer de que grande parte da hegemonia narrativa acerca do “Teatro Brasileiro” se erigiu no Sudeste, (leia-se: eixo Rio-São Paulo) e mais especificamente a partir da bibliografia da Universidade de São Paulo. Nossas miradas curatoriais objetivaram desestabilizar (ou ao menos recusar) tais regimes de poder e de saber, apostando em outras formas de se fazer, de se viver e de se pensar os teatros. Portanto, caminhemos. Ainda há muitos sonhos pela frente.