rafael barbosa

Fortaleza - CE

Fragmento Teatral

Tarkovski(Em clamor à Matriarca, enquanto coça as costas de Rosemary.) Por favor, minha mãe: Consiga um professor de arte. Eu mesmo posso me encarregar de matá-lo no final do curso, isto é, “eliminá-lo”. Temos diversos quartos, ele pode ficar morando em um deles como mestre Laurence o fez.

Rosemary(Puxando suas orelhas.) Chega, Tarkovski... Sua mãe tem razão. Pare com isso!

(Tarkovski começa a ranger os dentes de dor.)

Miyazaki – Escute o que Tarkovski lhe pede, minha mãe! Temos medo que o desejo de conhecer mais sobre arte nos consuma, pois isso pode ocasionar outra tentativa de fuga.

Matriarca(Levantando-se e batendo no rosto dele.) Atreva-se a fugir, seu verme! (Aos berros.) Vocês são uns ingratos mesmo, mesmo ouvindo todas as noites a estória sofrida do pai de vocês, ainda ousam desobedecê-lo.

Rosemary (Cospe no chão.) Ríspidos! Rebeldes! São uns malditos ingratos mesmo, Ester! Principalmente Tarkovski... Vocês homens são mesmo uns burros, parece que não têm nem meia colher de chá de sabedoria. Vamos parar com essas estórias de arte. (Esfregando o rosto, perturbada.) Chega! Preciso dos dois na cama agora... Minha máquina não para. (Segurando os cabelos deles com a mandíbula.) Eu necessito, eu preciso ser desejada... Estou falando grego? (Empinando os seios por cima da roupa.) Os cavaleiros, esses homens medievais, são aqueles que sentem sede quando saem pelo deserto, eu sou o oásis, eu amarro seus cavalos à minha margem, para vocês beberem da minha água. Deleite, para isso que servem os cavaleiros, isto é, maridos, não? Eu e a mãe de vocês cansamos dessa conversa insípida e desnecessária... (Gritando.) Pro quarto, agora!

Tarkovski(Amedrontado.) Pois eu nem sequer me encostarei em ti, não tenho sede, não tenho cavalo. (Tentando aliviar.) Pelo menos não essa noite...

Rosemary(Indignada.) O que você disse? Como ousa me renegar! Que isso jamais se repita.

Matriarca(Sacudindo as saias como se estivesse possuída por um demônio.) E esse desrespeito repentino dentro da minha casa? (Com voz autoritária.) Vocês irão apanhar por isso, pelas suas palavras de animais. Rosemary, traga uma vara de eucalipto!

(Rosemary sai de cena, mas rapidamente volta com uma vara verde e escura de eucalipto na boca.)

Matriarca – Abaixem as calças e fiquem de quatro, preciso purificar vocês desse tipo de comportamento doentio.

Miyazaki(Cheio de pavor.) Desculpe, minha mãe...

Matriarca – Rosemary, nos deixe a sós! Pode aguardar no quarto, eles irão te satisfazer depois de serem punidos. (À plateia.) Escutai o que foi escrito pelos profetas: Um esposo sempre deve satisfazer os desejos de sua mulher, pois elas são a cabeça do lar. (Aos filhos.) Tirem essa roupa! (Batendo com a vara no chão.) Agora, seus porcos!

(Eles, com muito medo, tiram as calças e viram-se de quatro para ela. Rosemary sai dali com sorriso malicioso.)

Matriarca(Batendo neles com força.) Não tentem fugir daqui, sou capaz de cortar o dedo de vocês, um por um, a cada tentativa. (Tossindo.) Parece que todo esse tempo eu estive contando anedotas ou fábulas... Não! Estou falando da pura verdade. (Eles começam a gritar de dor.) O pai de vocês deve estar magoado agora ao lado de nosso senhor e salvador Jesus Cristo. (Batendo com mais força.) E nunca mais me desrespeitem e nem a Rosemary. (Tossindo.) Peçam perdão a Deus, agora!

Miyazaki – Perdão, Senhor. (Rangendo os dentes.) Agora pare com isso, minha mãe!

Tarkovski(Demonstrando menos dor que Miyazaki.) Recuso-me!

Matriarca – (Batendo com mais força apenas em Tarkovski.) Como se atreve, seu porco malcriado? Eu sou sua progenitora, a razão e a sensibilidade! (Dobrando a vara para a batida ter mais impacto.) A disciplina e a ternura! (Jorrando saliva pela boca.) A vagabunda que te pariu! Você não sabe as dores indescritíveis pelas quais passei para te trazer ao mundo.

Tarkovski(Falando para si.) Para nos trazer a um buraco.

Matriarca(Mostrando os dentes com muito ódio, como se fosse mordê-lo.) Eu podia ter afogado meus bebês na banheira! Sempre fui uma serva de Deus, cuidei de você... (Em crise absoluta de tosse.) Deixei de comer para colocar o pão em suas bocas!

Miyazaki(Aconselhando ao irmão, baixinho.) Peça perdão, seu idiota!

Tarkovski(Falando com muita dor.) Eu quero um professor de artes, que queime no fogo do inferno nosso pai, eu não o conheci mesmo, que queime no fogo do inferno essa casa! Que queime no fogo do inferno, Rosemary! (Aos berros.) Eu quero um professor de arte! Eu quero um professor de arte!

(Devido aos gritos de Tarkovski, começa a desabar bastante terra sobre eles.)

Miyazaki – Mãe, não lhe dê ouvidos, deve ter ficado abalado novamente com a estória da morte de nosso pai, deixe-o em paz.

Matriarca(Dando chutes no filho violentamente, enquanto grita.) Eu te mato! Filho pródigo! (Cuspindo nele.) Satanás está te usando e você não percebe! Satanás quer destruir nossa família!

Tarkovski(Falando sem fôlego.) Eu vou fugir, minha mãe! Ou a senhora nos traz um professor de artes...

Matriarca(Arrancando os próprios cabelos.) Vá atazanar o cão, seu ingrato! Amaldiçoo os teus desejos!

(Matriarca senta muito tonta no banquinho, fica olhando para seus cabelos brancos que arrancou e, embora esteja passando muito mal, ela ainda mantém a postura severa. Eles vestem-se.)

Rosemary (Voltando enrolada no lençol da cama.) A senhora está bem?

Matriarca(Tossindo com a garganta cheia de catarro.) Vocês estão me matando! (Ofegante.) Traga meu xarope...

(Miyazaki começa a afagar os pés dela.)

Miyazaki(Preocupado.) Se acalme minha mãe, esqueça Tarkovski! Ele está neurótico, só isso... Ele sempre foi obediente!

Tarkovski(Olhando para ela com atrevimento.) Não estou nada neurótico, apenas quero um motivo para não fugir daqui, e esse motivo é ocupar meu tempo com um novo professor de arte. Somente a arte pode me fazer sobreviver... Vida obscura! Sinto-me uma toupeira enterrado aqui, parece que está rolando um furacão lá em cima, todos nós somos coelhos enfiados nessa toca... (Olhando para a própria pele.) Veja, como estamos pálidos!

Miyazaki(Falando alto.) Cadê o xarope, Rosemary? (Encarando o irmão.) E você Tarkovski, cale-se, em outro momento discutiremos essa questão!

(Fragmento de A raposa das tetas inchadas)

Rafael Barbosa é dramaturgo.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

A diversidade de práticas e formatos na escrita de Rafael Barbosa faz de sua produção mais recente como dramaturgo um campo de experimentação e pesquisa. Escrevendo sozinho ou colaborando com diversos coletivos teatrais de Fortaleza, seus processos vão desde o que chamamos (pela força do jargão) de gabinete até o dramaturgismo em criações na sala de ensaio. Encenador e ator de alguns de seus textos, Rafael define-se como dramaturgo por escrever para o gênero dramático, o que podemos notar na presença de personagens subjetivos, nos diálogos bem construídos e no conflito em torno de laços familiares.

Formado em Teatro pelo IFCE, Rafael é carioca radicado no estado do Ceará desde 2004. Pertence a uma geração proeminente do teatro cearense, que inclui grupos como o Expressões Humanas, a Inquieta Cia., Manada e o Ninho. Na última década, venceu por duas vezes o Concurso Nacional de Jovens Dramaturgos com os textos Quando ele dançou Maria (2015) e O braço do pai (2017), publicados em coletânea pelo Espaço Cultural Escola SESC, no Rio de Janeiro, junto a outros textos vencedores. É professor de Artes e Literatura na rede municipal de ensino, contexto em que estuda e pratica o procedimento da adaptação de textos clássicos – o qual veremos funcionar por exemplo em Orlando, peça de 2013 adaptada do romance homônimo de Virginia Woolf e assinada em parceria com Herê Aquino, do Grupo Expressões Humanas. 

Sua capacidade de se comunicar com o público jovem, do qual se mantém próximo devido à atuação como docente na educação básica, leva Rafael a colaborar durante certo período como roteirista para o canal do YouTube Bela Bagunça, que possui atualmente mais de 12 milhões de inscritos e vídeos com mais de 100 milhões de visualizações. No processo de criação para o canal, Rafael manda o roteiro narrado por áudio, de modo que a dramaturgia se produz pela palavra e não pelo papel. Bela Bagunça apresenta as peripécias do cotidiano de Isabela Castro, uma garota que gosta de se divertir. Em perspectiva expandida de uma dramaturgia para a cena, a participação de Rafael no canal faz dele um dos dramaturgos contemporâneos mais relevantes para a criação de conteúdo destinado ao público infantojuvenil no Brasil.

Dentre as criações com outros artistas da cidade, destacam-se Ô, Putaria (2012), premiado como Melhor Texto Original no FECTA e no FESFORT, e Metrópole (2013), em parceria com Silvero Pereira e Gyl Giffoni. Na criação deste último trabalho, o procedimento utilizado por Rafael foi o envio de questionários para a equipe do espetáculo, que poderia indicar escolhas a serem tomadas, desistências e reviravoltas. Em Metrópole, dois artistas de teatro, irmãos, se visitam repetidas vezes. A peça se desenrola num jogo de duplos, contrastes e oposições, por meio dos quais Rafael se propõe a pensar, em caráter filosófico e metalinguístico, sobre o ofício da cena e sua relevância. Durante a pandemia de Covid-19, o texto sofreu algumas alterações para ser apresentado on-line pelo Instagram, de modo que as constantes visitas que os irmãos se faziam foram substituídas por ligações de videochamada.

O interesse de Rafael pela metalinguagem fica ainda mais evidente em A raposa das tetas inchadas (2016), que lhe rendeu o prêmio de Melhor Autor como Destaques do Ano e no Ceará em Cena. Na peça, dividida em cinco capítulos, o cenário de uma casa em ruínas, cujo teto está sempre caindo terra, abriga uma família que vive em situação de isolamento sob o comando de Matriarca, que já não consegue manter a família sob seu controle a não ser por uma narrativa repetida dia a dia, incansavelmente, sobre a morte do pai – como nos grandes sistemas de poder. A espera e a chegada de um novo professor de arte para a família movimentam a trama, na qual Rafael destila uma crítica ao ensino da arte e sua vinculação a um cânone intocável.

Carregado de simbologias e imagens delirantes, Rafael cria uma realidade em que dois irmãos disputam a atenção da mãe como crítica de arte e, logo, o posto de melhor artista da família. A associação entre o núcleo familiar e as camadas do mercado da arte – e do teatro – carregam o texto de ironia, colocando em evidência sentimentos como inveja, frustração e morte. As referências evidentes a propostas estéticas do cinema contemporâneo – as personagens principais chamam-se Tarkovski, Miyazaki e Rosemary –, se confundem com personagens confinados presentes no imaginário de autores teatrais, como Jean Genet, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst, em que o erotismo e a submissão conduzem subliminarmente os afetos.

As rubricas também cumprem função importante, especialmente na compreensão do texto elaborado com frases dúbias e de duplo sentido. É pelas rubricas, inclusive, que nos é revelado certo caráter animalesco de Matriarca, permitindo-nos associá-la ao título da obra. Mais um recurso de ironia de Rafael Barbosa, em cujas obras o sarcasmo e o deboche são recursos de imaginação para suportar o real.

Glauber Coradesqui

Rafael Barbosa é dramaturgo.

A diversidade de práticas e formatos na escrita de Rafael Barbosa faz de sua produção mais recente como dramaturgo um campo de experimentação e pesquisa. Escrevendo sozinho ou colaborando com diversos coletivos teatrais de Fortaleza, seus processos vão desde o que chamamos (pela força do jargão) de gabinete até o dramaturgismo em criações na sala de ensaio. Encenador e ator de alguns de seus textos, Rafael define-se como dramaturgo por escrever para o gênero dramático, o que podemos notar na presença de personagens subjetivos, nos diálogos bem construídos e no conflito em torno de laços familiares.

Formado em Teatro pelo IFCE, Rafael é carioca radicado no estado do Ceará desde 2004. Pertence a uma geração proeminente do teatro cearense, que inclui grupos como o Expressões Humanas, a Inquieta Cia., Manada e o Ninho. Na última década, venceu por duas vezes o Concurso Nacional de Jovens Dramaturgos com os textos Quando ele dançou Maria (2015) e O braço do pai (2017), publicados em coletânea pelo Espaço Cultural Escola SESC, no Rio de Janeiro, junto a outros textos vencedores. É professor de Artes e Literatura na rede municipal de ensino, contexto em que estuda e pratica o procedimento da adaptação de textos clássicos – o qual veremos funcionar por exemplo em Orlando, peça de 2013 adaptada do romance homônimo de Virginia Woolf e assinada em parceria com Herê Aquino, do Grupo Expressões Humanas. 

Sua capacidade de se comunicar com o público jovem, do qual se mantém próximo devido à atuação como docente na educação básica, leva Rafael a colaborar durante certo período como roteirista para o canal do YouTube Bela Bagunça, que possui atualmente mais de 12 milhões de inscritos e vídeos com mais de 100 milhões de visualizações. No processo de criação para o canal, Rafael manda o roteiro narrado por áudio, de modo que a dramaturgia se produz pela palavra e não pelo papel. Bela Bagunça apresenta as peripécias do cotidiano de Isabela Castro, uma garota que gosta de se divertir. Em perspectiva expandida de uma dramaturgia para a cena, a participação de Rafael no canal faz dele um dos dramaturgos contemporâneos mais relevantes para a criação de conteúdo destinado ao público infantojuvenil no Brasil.

Dentre as criações com outros artistas da cidade, destacam-se Ô, Putaria (2012), premiado como Melhor Texto Original no FECTA e no FESFORT, e Metrópole (2013), em parceria com Silvero Pereira e Gyl Giffoni. Na criação deste último trabalho, o procedimento utilizado por Rafael foi o envio de questionários para a equipe do espetáculo, que poderia indicar escolhas a serem tomadas, desistências e reviravoltas. Em Metrópole, dois artistas de teatro, irmãos, se visitam repetidas vezes. A peça se desenrola num jogo de duplos, contrastes e oposições, por meio dos quais Rafael se propõe a pensar, em caráter filosófico e metalinguístico, sobre o ofício da cena e sua relevância. Durante a pandemia de Covid-19, o texto sofreu algumas alterações para ser apresentado on-line pelo Instagram, de modo que as constantes visitas que os irmãos se faziam foram substituídas por ligações de videochamada.

O interesse de Rafael pela metalinguagem fica ainda mais evidente em A raposa das tetas inchadas (2016), que lhe rendeu o prêmio de Melhor Autor como Destaques do Ano e no Ceará em Cena. Na peça, dividida em cinco capítulos, o cenário de uma casa em ruínas, cujo teto está sempre caindo terra, abriga uma família que vive em situação de isolamento sob o comando de Matriarca, que já não consegue manter a família sob seu controle a não ser por uma narrativa repetida dia a dia, incansavelmente, sobre a morte do pai – como nos grandes sistemas de poder. A espera e a chegada de um novo professor de arte para a família movimentam a trama, na qual Rafael destila uma crítica ao ensino da arte e sua vinculação a um cânone intocável.

Carregado de simbologias e imagens delirantes, Rafael cria uma realidade em que dois irmãos disputam a atenção da mãe como crítica de arte e, logo, o posto de melhor artista da família. A associação entre o núcleo familiar e as camadas do mercado da arte – e do teatro – carregam o texto de ironia, colocando em evidência sentimentos como inveja, frustração e morte. As referências evidentes a propostas estéticas do cinema contemporâneo – as personagens principais chamam-se Tarkovski, Miyazaki e Rosemary –, se confundem com personagens confinados presentes no imaginário de autores teatrais, como Jean Genet, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst, em que o erotismo e a submissão conduzem subliminarmente os afetos.

As rubricas também cumprem função importante, especialmente na compreensão do texto elaborado com frases dúbias e de duplo sentido. É pelas rubricas, inclusive, que nos é revelado certo caráter animalesco de Matriarca, permitindo-nos associá-la ao título da obra. Mais um recurso de ironia de Rafael Barbosa, em cujas obras o sarcasmo e o deboche são recursos de imaginação para suportar o real.

Glauber Coradesqui

Tarkovski(Em clamor à Matriarca, enquanto coça as costas de Rosemary.) Por favor, minha mãe: Consiga um professor de arte. Eu mesmo posso me encarregar de matá-lo no final do curso, isto é, “eliminá-lo”. Temos diversos quartos, ele pode ficar morando em um deles como mestre Laurence o fez.

Rosemary(Puxando suas orelhas.) Chega, Tarkovski... Sua mãe tem razão. Pare com isso!

(Tarkovski começa a ranger os dentes de dor.)

Miyazaki – Escute o que Tarkovski lhe pede, minha mãe! Temos medo que o desejo de conhecer mais sobre arte nos consuma, pois isso pode ocasionar outra tentativa de fuga.

Matriarca(Levantando-se e batendo no rosto dele.) Atreva-se a fugir, seu verme! (Aos berros.) Vocês são uns ingratos mesmo, mesmo ouvindo todas as noites a estória sofrida do pai de vocês, ainda ousam desobedecê-lo.

Rosemary (Cospe no chão.) Ríspidos! Rebeldes! São uns malditos ingratos mesmo, Ester! Principalmente Tarkovski... Vocês homens são mesmo uns burros, parece que não têm nem meia colher de chá de sabedoria. Vamos parar com essas estórias de arte. (Esfregando o rosto, perturbada.) Chega! Preciso dos dois na cama agora... Minha máquina não para. (Segurando os cabelos deles com a mandíbula.) Eu necessito, eu preciso ser desejada... Estou falando grego? (Empinando os seios por cima da roupa.) Os cavaleiros, esses homens medievais, são aqueles que sentem sede quando saem pelo deserto, eu sou o oásis, eu amarro seus cavalos à minha margem, para vocês beberem da minha água. Deleite, para isso que servem os cavaleiros, isto é, maridos, não? Eu e a mãe de vocês cansamos dessa conversa insípida e desnecessária... (Gritando.) Pro quarto, agora!

Tarkovski(Amedrontado.) Pois eu nem sequer me encostarei em ti, não tenho sede, não tenho cavalo. (Tentando aliviar.) Pelo menos não essa noite...

Rosemary(Indignada.) O que você disse? Como ousa me renegar! Que isso jamais se repita.

Matriarca(Sacudindo as saias como se estivesse possuída por um demônio.) E esse desrespeito repentino dentro da minha casa? (Com voz autoritária.) Vocês irão apanhar por isso, pelas suas palavras de animais. Rosemary, traga uma vara de eucalipto!

(Rosemary sai de cena, mas rapidamente volta com uma vara verde e escura de eucalipto na boca.)

Matriarca – Abaixem as calças e fiquem de quatro, preciso purificar vocês desse tipo de comportamento doentio.

Miyazaki(Cheio de pavor.) Desculpe, minha mãe...

Matriarca – Rosemary, nos deixe a sós! Pode aguardar no quarto, eles irão te satisfazer depois de serem punidos. (À plateia.) Escutai o que foi escrito pelos profetas: Um esposo sempre deve satisfazer os desejos de sua mulher, pois elas são a cabeça do lar. (Aos filhos.) Tirem essa roupa! (Batendo com a vara no chão.) Agora, seus porcos!

(Eles, com muito medo, tiram as calças e viram-se de quatro para ela. Rosemary sai dali com sorriso malicioso.)

Matriarca(Batendo neles com força.) Não tentem fugir daqui, sou capaz de cortar o dedo de vocês, um por um, a cada tentativa. (Tossindo.) Parece que todo esse tempo eu estive contando anedotas ou fábulas... Não! Estou falando da pura verdade. (Eles começam a gritar de dor.) O pai de vocês deve estar magoado agora ao lado de nosso senhor e salvador Jesus Cristo. (Batendo com mais força.) E nunca mais me desrespeitem e nem a Rosemary. (Tossindo.) Peçam perdão a Deus, agora!

Miyazaki – Perdão, Senhor. (Rangendo os dentes.) Agora pare com isso, minha mãe!

Tarkovski(Demonstrando menos dor que Miyazaki.) Recuso-me!

Matriarca – (Batendo com mais força apenas em Tarkovski.) Como se atreve, seu porco malcriado? Eu sou sua progenitora, a razão e a sensibilidade! (Dobrando a vara para a batida ter mais impacto.) A disciplina e a ternura! (Jorrando saliva pela boca.) A vagabunda que te pariu! Você não sabe as dores indescritíveis pelas quais passei para te trazer ao mundo.

Tarkovski(Falando para si.) Para nos trazer a um buraco.

Matriarca(Mostrando os dentes com muito ódio, como se fosse mordê-lo.) Eu podia ter afogado meus bebês na banheira! Sempre fui uma serva de Deus, cuidei de você... (Em crise absoluta de tosse.) Deixei de comer para colocar o pão em suas bocas!

Miyazaki(Aconselhando ao irmão, baixinho.) Peça perdão, seu idiota!

Tarkovski(Falando com muita dor.) Eu quero um professor de artes, que queime no fogo do inferno nosso pai, eu não o conheci mesmo, que queime no fogo do inferno essa casa! Que queime no fogo do inferno, Rosemary! (Aos berros.) Eu quero um professor de arte! Eu quero um professor de arte!

(Devido aos gritos de Tarkovski, começa a desabar bastante terra sobre eles.)

Miyazaki – Mãe, não lhe dê ouvidos, deve ter ficado abalado novamente com a estória da morte de nosso pai, deixe-o em paz.

Matriarca(Dando chutes no filho violentamente, enquanto grita.) Eu te mato! Filho pródigo! (Cuspindo nele.) Satanás está te usando e você não percebe! Satanás quer destruir nossa família!

Tarkovski(Falando sem fôlego.) Eu vou fugir, minha mãe! Ou a senhora nos traz um professor de artes...

Matriarca(Arrancando os próprios cabelos.) Vá atazanar o cão, seu ingrato! Amaldiçoo os teus desejos!

(Matriarca senta muito tonta no banquinho, fica olhando para seus cabelos brancos que arrancou e, embora esteja passando muito mal, ela ainda mantém a postura severa. Eles vestem-se.)

Rosemary (Voltando enrolada no lençol da cama.) A senhora está bem?

Matriarca(Tossindo com a garganta cheia de catarro.) Vocês estão me matando! (Ofegante.) Traga meu xarope...

(Miyazaki começa a afagar os pés dela.)

Miyazaki(Preocupado.) Se acalme minha mãe, esqueça Tarkovski! Ele está neurótico, só isso... Ele sempre foi obediente!

Tarkovski(Olhando para ela com atrevimento.) Não estou nada neurótico, apenas quero um motivo para não fugir daqui, e esse motivo é ocupar meu tempo com um novo professor de arte. Somente a arte pode me fazer sobreviver... Vida obscura! Sinto-me uma toupeira enterrado aqui, parece que está rolando um furacão lá em cima, todos nós somos coelhos enfiados nessa toca... (Olhando para a própria pele.) Veja, como estamos pálidos!

Miyazaki(Falando alto.) Cadê o xarope, Rosemary? (Encarando o irmão.) E você Tarkovski, cale-se, em outro momento discutiremos essa questão!

(Fragmento de A raposa das tetas inchadas)