josé fernando de azevedo

São Paulo - SP

Fragmento Teatral

Quarta carta (Festa)

O ator pega um maço de cartas e lê algumas. Escolhe uma delas, começa a ler e dar vida à carta. Enquanto fala, o ator prepara a cena (confete, serpentinas, etc.) 

Então, o corpo de homem veio na minha direção. Eu não. Não sambo. Eu disse. Mas ele, sem peia no gesto, me pede licença, com um sorriso aceso. Eu não sabia, mas dizer sim é como acordar sem despertador – relógio natural, dizem. Carnaval de firma, eu, Satã, era o office-boy recém-contratado, aprendiz de escritório, faz-tudo, mas estava feliz da vida, porque era o meu primeiro carnaval da firma. Eu não sabia, Satã, mas os olhos dos outros não só te veem, como te fazem ver. Ele, todos os dias, me passava a pasta, as contas, as cartas, me dizia o que fazer. Ele era o cara que me dizia, todos os dias, o que fazer. Auxiliar do chefe, ele era o meu chefe, e tinha sempre um sorriso aceso ao me dizer o endereço, pra onde ir, com quem falar – o que fazer. Ele era diferente dos outros, preto como eu, não se confundia na paisagem da firma. Era bonito, era forte, e as moças todas cochichavam coisas olhando pra ele, sorridente do outro lado da mesa, todos os dias. Mas aquele dia era dia de festa, quase noite, carnaval, e então ele veio sambando, e bem perto de mim eu ouvi sua voz, rouca de festa: “eu sei que você gosta, que você quer, e eu quero também”, e eu nem sabia que queria tanto, e que era tanto que ele podia até adivinhar. “E ninguém precisa saber. Todo mundo aqui quer cuidar da vida do outro, mas a vida é nossa, minha e sua, e a gente já sabe o que faz”. E eu não sabia que já sabia tudo isso, e que a vida era assim, e que já era minha – e dele. E ele foi, como se eu já soubesse que devia segui-lo. E eu fui, e o corredor me levou até o banheiro dos fundos. A porta aberta, a festa lá fora, fresta, eu não sabia, mas eu queria, e puxado pra dentro, o beijo que eu não sabia, de homem outro, me cavou a boca, a língua dele emendando a minha. “Eu vou te comer e você vai gostar, porque você sabe que quer”, e eu disse eu quero, mesmo sem saber que dizer sim também pode ser como acordar atrasado, no susto, porque não se ouviu o despertador. E então, a cabeça contra a pia, torneira correndo, água sobre a cabeça em brasa, festa lá fora. Na volta, a festa de todos, e todos pareciam adivinhar a nossa festa particular. E ele, homem bonito, o mais bonito de todos, dançava e ria, soldado que voltava da guerra, vivo, outro. E depois da festa, na casa dele, o carnaval parecia não ter fim. Eu tinha medo, mas eu não sabia que o medo não é o mesmo que covardia. E então, antes de ir embora, ele me pediu que fizesse com ele como ele tinha feito comigo, eu, o fiel aprendiz. Ele, homem forte, se fez ainda mais homem e forte, eu entre suas pernas, ele me tomando lição por lição. Na volta pra casa, no ônibus, olhava em volta, e era como se todos soubessem o meu segredo, como se o cheiro dele de tão forte em mim me denunciasse. O dia pareceu infinito, a noite cheia de esperas – na manhã seguinte: acabo de chegar na firma. Estou atrasado. Vou direto à mesa dele, mas ele não está. Ninguém me olha, como se o efeito agora fosse o contrário. Me chamam. Vou à outra sala. Não precisam mais de mim, dizem. Saio. Não sei direito o que fazer. Da calçada, avisto o boteco, do outro lado da rua. Vejo que ele está lá, tomando um café. Vou criar coragem e ir na direção dele, que deve estar imaginando o que fazer, já que também não precisam mais dele ali. Vou criar coragem, depois dessa noite, em que fiquei à espera de notícias suas.

Primeiro manifesto

Microfone. Como quem entoa um manifesto, ao som forte da batida.

O amor é sempre uma intenção à procura de uma ação. O saldo da escravidão foi a redução do homem negro a reprodutor, objeto, nunca o amante recíproco. Na intimidade entre casa grande e senzala, a violência era a mediação. Já aquela que ele amava poderia ser vendida a qualquer momento; seu filho poderia ser vendido ou trocado como qualquer outra mercadoria. Se amar é prática que se aprende, que história do amor é essa que se aprendeu a praticar, quando a intimidade sempre foi o campo da violência?

Quarta carta (Mãe)

Os dois garotos brincam. Estão no quarto. Ele dispõe os bonecos como quem cria um universo próprio, esperando que o outro aos poucos se aproxime e peça para entrar, para brincar também. Mas o outro observa. Um pouco mais velho, não vê nos bonecos tanta realidade. Ele já parece mais interessado na realidade que no brinquedo. Mas o que brinca, de tempos em tempos lança um olhar como se quisesse flagrar algo na atitude do outro. Jogo. Vira-se de costas, com a barriga para baixo, sobre a cama, para manipular os bonecos sem perder de vista o que acontece ao redor. O outro se aproxima. Pega um dos bonecos e finge interesse no duelo proposto. Abaixa-se ao lado. Próximo o suficiente para que as respirações se confundam. Moleques.

O ator faz o diálogo olhando para a plateia, frontalmente, oscilando a voz e o olhar, como se “quem fala” estivesse sempre se relacionando com o outro à sua frente.

Serginho, deixa eu te comer?
Como?
Deixa eu te comer.
Como assim?
Ah, vai ser gostoso, eu prometo que não vou te machucar.
É pra eu acreditar em você?
Você não confia em mim?
Eu?
Vai ser sua primeira vez, não vai?
Como é que faz?
É só uma brincadeira. Segura aqui.
Não quero brincar. Eu quero de verdade.
Então vem.
Não.
Vem logo sua bichinha. Segura aqui que eu vou te comer gostoso.
Não.
Ninguém vai ficar sabendo.
Mas por que não?
Melhor não.
Você acha?
Deixa? Eu quero te comer gostoso.
Sem contar pra ninguém?
Ninguém. Mas se você não deixar eu conto pra todo mundo na escola que você é bicha.
É? Então vai embora. Vai embora agora.
Só um pouquinho.
Vai embora agora. Mãê... Agora! Mãê... Você não entende nada.
E ele foi. E o menino ficou ali, por muito tempo, à espera de notícias suas.

Segundo manifesto

Microfone. Como quem entoa um manifesto, ao som forte da batida.

O amor então nunca é uma solução individual. São coletivas nossas dificuldades, nossas expectativas, nossas práticas. Ato de subjugação sempre, o uso do corpo negro definiu formas de afetividade: ou a submissão, como se coisa, tendo no prazer do outro a recompensa pela sua vida; ou a vingança máscula e ressentida de ser objeto cobiçado, tendo o que o senhor não tinha, embora descartável para o uso provisório. Resistir a isso, amando o outro, impõe uma forma de engajamento, de luta. Minha palavra, meu gesto: meu amor é guerrear.

(Fragmento de Cartas a Madame Satã)

José Fernando de Azevedo é dramaturgo e roteirista, diretor de teatro e cinema, curador, professor na Escola de Arte Dramática, além de professor e orientador no programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da ECA-USP.

ouça a entrevista:

Apresentação Critica

As investigações cênicas de José Fernando Peixoto de Azevedo, tanto em suas encenações quanto em suas dramaturgias, forjam uma crítica perspectiva acerca de algumas das mais acirradas tensões, urgências e desigualdades de nosso tempo histórico. As destruições ocasionadas pelo capitalismo neoliberal, a violência racista sistematicamente cravada na formação social do Brasil (e do mundo moderno) e a arrasadora colonialidade, continuamente reformulada, estão entre as questões nucleares que José Fernando se dedica a pesquisar. O pensamento estético-político de Bertold Brecht é certamente um dos pilares fundamentais de suas criações, ao lado de um apurado uso de recursos e técnicas cinematográficos, convidando-nos, a partir de tais articulações, a repensar as imagens deste mundo.

José Fernando é dramaturgo, curador, diretor e pesquisador teatral. Doutorou-se pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em cuja tese refletiu sobre o teatro épico de Brecht. Já colaborou com diversos coletivos teatrais paulistanos, como Os Crespos, o Chai-na, e a Ordinária Companhia. Ensaísta, possui escritos que versam sobre história e estética do teatro brasileiro; poéticas, teatralidades e dramaturgias negras; além de reflexões filosóficas e sociológicas. Coordena a coleção Encruzilhada da editora Cobogó, pela qual foram publicadas recentes obras de Jota Mombaça e Leda Maria Martins. Publicou, pela editora n-1, o volume da coleção Pandemia, intitulado Eu, um crioulo. José Fernando também é professor na Escola de Arte Dramática e no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes também da Universidade de São Paulo. Da teoria à sala de ensaio, das conferências aos palcos, Azevedo vem se projetando como uma das referências significativas de nossas cenas contemporâneas.

A trajetória artística e acadêmica de Zé Fernando, como é popular e ternamente conhecido, está fortemente ligada à cidade de São Paulo, onde cofundou, em 1997, o Teatro de Narradores, com o qual atuou na direção e/ou na dramaturgia até 2016. O grupo, nascido dentro dos muros da USP, desde o princípio primou por uma leitura a contrapelo da história brasileira, discutindo opressões, apagamentos e as contradições que, no passado e no presente, estruturam mecanismos de injustiça social. Depois de sair da universidade, a observação e o diálogo com o povo trabalhador, sujeito a tanta exploração, foi delineando a linguagem do grupo, adensando, com efeito, a relação entre atividade teatral e o movimento da cidade. Tais perquirições se concretizaram, em especial, nos espetáculos Cidade Desmanche (2009); Cidade Fim – Cidade Coro – Cidade Reverso (2011) e Cidade Vodu (2016), cujas dramaturgias foram tecidas por Zé Fernando. Em síntese, o que se presencia nestas três obras é uma profunda intermidialidade (projeções, imagens, filmes, musicalidades e sonoridades, múltiplos dispositivos tecnológicos), que coloca em questão a própria cidade, suas estruturas físicas e afetivas, os diversos sujeitos que a constituem, as marginalizações ali presentes, as macro e micro-histórias que dali brotam, rediscutindo o caráter público da cidade. Quem tem direito a transitar e a viver plenamente na pólis? As textualidades, entre contundentes diálogos e narrativas, perfuram o real, incorporando depoimentos, relatos e memórias dos atores, de imigrantes e dos moradores dos bairros. Sem pretender qualquer realismo no trato poético, a dramaturgia parte do real para reinventar modos outros de ocupar a cidade. “Quais vínculos, mesmo de imaginação, somos capazes de produzir?”, nos questiona o grupo no programa do espetáculo Cidade Fim. Todas as peças foram encenadas em espaços não convencionais (nas ruas, nas diferentes sedes que o grupo já teve, nas ruínas da cidade, etc.), realizando desenhos de cena que interpelam diretamente o público, solicitam o seu deslocamento com os atores, convidam-no a ser efetivamente coautor do espetáculo a se fazer, envolvem-no em uma atmosfera multissensorial, estimulando-o, por fim, a rever o seu próprio corpo na cidade. 

Zé Fernando é também um destacado criador e pensador dos teatros negros no Brasil. Nesta linha, as suas colaborações com Os Crespos são expressivas. O sobredito coletivo foi fundado como um grupo de estudos entre 2004 e 2005 também no contexto universitário da Escola de Arte Dramática da USP, denunciando, de antemão, a exclusão maciça da população negra nas universidades brasileiras. Os cinco artistas fundadores eram os únicos estudantes negros do curso naquele período. Ao longo do tempo, a investigação de teatralidades e dramaturgias negras foi consolidando os horizontes poéticos do grupo, nos quais as relações sociais e as identidades de pessoas negras no Brasil são redimensionadas, articulando neste processo questões e noções de gênero, classe, ancestralidade, aquilombamento e diáspora. Entre espetáculos teatrais, intervenções urbanas, publicações e debates, Os Crespos foram (e continuam a ser) agentes determinantes de uma nova paisagem teatral negra em São Paulo, inspirando grupos por todo o país. A presença de Zé Fernando (diga-se de passagem, ele é, até 2022, o único professor negro do curso) é parte substancial dessa história. Para o coletivo, o autor escreveu três peças, a saber: Ensaio sobre Carolina (2007), primeira montagem do grupo, Além do ponto (2011) e Cartas a Madame Satã (2014). Estes dois últimos espetáculos integram a trilogia “Dos desmanches aos sonhos”, cujas reflexões nucleares voltam-se para as afetividades, os desejos, as relações, as sexualidades e os amores vividos (ou socialmente vetados) entre pessoas negras. A montagem, em 2013, de Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, texto da escritora Cidinha da Silva, é o segundo capítulo desta trilogia.

Em Ensaios..., a dramaturgia parte do vigoroso livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, para refletir, em suma, sobre os efeitos do escravagismo e da racialização na formação das classes, da miséria e da exclusão geográfico-simbólica que engolfa o povo negro no Brasil. Além do ponto fabula uma agridoce relação entre uma mulher e um homem negros. Os dois estão, repetidamente, a ensaiar o término de seu relacionamento. A cada ensaio (ou tentativa) de rompimento, eles expõem suas fragilidades, contradições e sutis sentimentos que mostram uma relação composta não de inteiros, mas de cacos, em que não há encaixes perfeitos. As cenas, entre diálogos e narrações, armam uma delicada tensão entre as possibilidades de ruptura e de reencontro entre estas duas pessoas. O que fica e o que se apaga (ou se abandona) de uma relação? Cartas a Madame Satã, por fim, se debruça sobre as homoafetividades de homens negros, abordando seus processos de subjetivação, suas carências e sensibilidades em uma sociedade que veta tais relações. Em síntese, são obras que situam os signos, as corporeidades e as epistemologias negras não apenas como temas, mas como princípios construtores de linguagens artísticas.

Zé Fernando ainda coordena a plataforma Sociedade Abolicionista de Teatro, cujo objetivo principal é possibilitar parcerias entre artistas, especialmente artistas pretos, para que possam realizar projetos poético-políticos. Entre as criações desta plataforma destaca-se Três pretos: valor de uso, estreada em 2018 com dramaturgia de Zé Fernando.

Guilherme Diniz

José Fernando de Azevedo é dramaturgo e roteirista, diretor de teatro e cinema, curador, professor na Escola de Arte Dramática, além de professor e orientador no programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da ECA-USP.

As investigações cênicas de José Fernando Peixoto de Azevedo, tanto em suas encenações quanto em suas dramaturgias, forjam uma crítica perspectiva acerca de algumas das mais acirradas tensões, urgências e desigualdades de nosso tempo histórico. As destruições ocasionadas pelo capitalismo neoliberal, a violência racista sistematicamente cravada na formação social do Brasil (e do mundo moderno) e a arrasadora colonialidade, continuamente reformulada, estão entre as questões nucleares que José Fernando se dedica a pesquisar. O pensamento estético-político de Bertold Brecht é certamente um dos pilares fundamentais de suas criações, ao lado de um apurado uso de recursos e técnicas cinematográficos, convidando-nos, a partir de tais articulações, a repensar as imagens deste mundo.

José Fernando é dramaturgo, curador, diretor e pesquisador teatral. Doutorou-se pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em cuja tese refletiu sobre o teatro épico de Brecht. Já colaborou com diversos coletivos teatrais paulistanos, como Os Crespos, o Chai-na, e a Ordinária Companhia. Ensaísta, possui escritos que versam sobre história e estética do teatro brasileiro; poéticas, teatralidades e dramaturgias negras; além de reflexões filosóficas e sociológicas. Coordena a coleção Encruzilhada da editora Cobogó, pela qual foram publicadas recentes obras de Jota Mombaça e Leda Maria Martins. Publicou, pela editora n-1, o volume da coleção Pandemia, intitulado Eu, um crioulo. José Fernando também é professor na Escola de Arte Dramática e no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes também da Universidade de São Paulo. Da teoria à sala de ensaio, das conferências aos palcos, Azevedo vem se projetando como uma das referências significativas de nossas cenas contemporâneas.

A trajetória artística e acadêmica de Zé Fernando, como é popular e ternamente conhecido, está fortemente ligada à cidade de São Paulo, onde cofundou, em 1997, o Teatro de Narradores, com o qual atuou na direção e/ou na dramaturgia até 2016. O grupo, nascido dentro dos muros da USP, desde o princípio primou por uma leitura a contrapelo da história brasileira, discutindo opressões, apagamentos e as contradições que, no passado e no presente, estruturam mecanismos de injustiça social. Depois de sair da universidade, a observação e o diálogo com o povo trabalhador, sujeito a tanta exploração, foi delineando a linguagem do grupo, adensando, com efeito, a relação entre atividade teatral e o movimento da cidade. Tais perquirições se concretizaram, em especial, nos espetáculos Cidade Desmanche (2009); Cidade Fim – Cidade Coro – Cidade Reverso (2011) e Cidade Vodu (2016), cujas dramaturgias foram tecidas por Zé Fernando. Em síntese, o que se presencia nestas três obras é uma profunda intermidialidade (projeções, imagens, filmes, musicalidades e sonoridades, múltiplos dispositivos tecnológicos), que coloca em questão a própria cidade, suas estruturas físicas e afetivas, os diversos sujeitos que a constituem, as marginalizações ali presentes, as macro e micro-histórias que dali brotam, rediscutindo o caráter público da cidade. Quem tem direito a transitar e a viver plenamente na pólis? As textualidades, entre contundentes diálogos e narrativas, perfuram o real, incorporando depoimentos, relatos e memórias dos atores, de imigrantes e dos moradores dos bairros. Sem pretender qualquer realismo no trato poético, a dramaturgia parte do real para reinventar modos outros de ocupar a cidade. “Quais vínculos, mesmo de imaginação, somos capazes de produzir?”, nos questiona o grupo no programa do espetáculo Cidade Fim. Todas as peças foram encenadas em espaços não convencionais (nas ruas, nas diferentes sedes que o grupo já teve, nas ruínas da cidade, etc.), realizando desenhos de cena que interpelam diretamente o público, solicitam o seu deslocamento com os atores, convidam-no a ser efetivamente coautor do espetáculo a se fazer, envolvem-no em uma atmosfera multissensorial, estimulando-o, por fim, a rever o seu próprio corpo na cidade. 

Zé Fernando é também um destacado criador e pensador dos teatros negros no Brasil. Nesta linha, as suas colaborações com Os Crespos são expressivas. O sobredito coletivo foi fundado como um grupo de estudos entre 2004 e 2005 também no contexto universitário da Escola de Arte Dramática da USP, denunciando, de antemão, a exclusão maciça da população negra nas universidades brasileiras. Os cinco artistas fundadores eram os únicos estudantes negros do curso naquele período. Ao longo do tempo, a investigação de teatralidades e dramaturgias negras foi consolidando os horizontes poéticos do grupo, nos quais as relações sociais e as identidades de pessoas negras no Brasil são redimensionadas, articulando neste processo questões e noções de gênero, classe, ancestralidade, aquilombamento e diáspora. Entre espetáculos teatrais, intervenções urbanas, publicações e debates, Os Crespos foram (e continuam a ser) agentes determinantes de uma nova paisagem teatral negra em São Paulo, inspirando grupos por todo o país. A presença de Zé Fernando (diga-se de passagem, ele é, até 2022, o único professor negro do curso) é parte substancial dessa história. Para o coletivo, o autor escreveu três peças, a saber: Ensaio sobre Carolina (2007), primeira montagem do grupo, Além do ponto (2011) e Cartas a Madame Satã (2014). Estes dois últimos espetáculos integram a trilogia “Dos desmanches aos sonhos”, cujas reflexões nucleares voltam-se para as afetividades, os desejos, as relações, as sexualidades e os amores vividos (ou socialmente vetados) entre pessoas negras. A montagem, em 2013, de Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, texto da escritora Cidinha da Silva, é o segundo capítulo desta trilogia.

Em Ensaios..., a dramaturgia parte do vigoroso livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, para refletir, em suma, sobre os efeitos do escravagismo e da racialização na formação das classes, da miséria e da exclusão geográfico-simbólica que engolfa o povo negro no Brasil. Além do ponto fabula uma agridoce relação entre uma mulher e um homem negros. Os dois estão, repetidamente, a ensaiar o término de seu relacionamento. A cada ensaio (ou tentativa) de rompimento, eles expõem suas fragilidades, contradições e sutis sentimentos que mostram uma relação composta não de inteiros, mas de cacos, em que não há encaixes perfeitos. As cenas, entre diálogos e narrações, armam uma delicada tensão entre as possibilidades de ruptura e de reencontro entre estas duas pessoas. O que fica e o que se apaga (ou se abandona) de uma relação? Cartas a Madame Satã, por fim, se debruça sobre as homoafetividades de homens negros, abordando seus processos de subjetivação, suas carências e sensibilidades em uma sociedade que veta tais relações. Em síntese, são obras que situam os signos, as corporeidades e as epistemologias negras não apenas como temas, mas como princípios construtores de linguagens artísticas.

Zé Fernando ainda coordena a plataforma Sociedade Abolicionista de Teatro, cujo objetivo principal é possibilitar parcerias entre artistas, especialmente artistas pretos, para que possam realizar projetos poético-políticos. Entre as criações desta plataforma destaca-se Três pretos: valor de uso, estreada em 2018 com dramaturgia de Zé Fernando.

Guilherme Diniz

Quarta carta (Festa)

O ator pega um maço de cartas e lê algumas. Escolhe uma delas, começa a ler e dar vida à carta. Enquanto fala, o ator prepara a cena (confete, serpentinas, etc.) 

Então, o corpo de homem veio na minha direção. Eu não. Não sambo. Eu disse. Mas ele, sem peia no gesto, me pede licença, com um sorriso aceso. Eu não sabia, mas dizer sim é como acordar sem despertador – relógio natural, dizem. Carnaval de firma, eu, Satã, era o office-boy recém-contratado, aprendiz de escritório, faz-tudo, mas estava feliz da vida, porque era o meu primeiro carnaval da firma. Eu não sabia, Satã, mas os olhos dos outros não só te veem, como te fazem ver. Ele, todos os dias, me passava a pasta, as contas, as cartas, me dizia o que fazer. Ele era o cara que me dizia, todos os dias, o que fazer. Auxiliar do chefe, ele era o meu chefe, e tinha sempre um sorriso aceso ao me dizer o endereço, pra onde ir, com quem falar – o que fazer. Ele era diferente dos outros, preto como eu, não se confundia na paisagem da firma. Era bonito, era forte, e as moças todas cochichavam coisas olhando pra ele, sorridente do outro lado da mesa, todos os dias. Mas aquele dia era dia de festa, quase noite, carnaval, e então ele veio sambando, e bem perto de mim eu ouvi sua voz, rouca de festa: “eu sei que você gosta, que você quer, e eu quero também”, e eu nem sabia que queria tanto, e que era tanto que ele podia até adivinhar. “E ninguém precisa saber. Todo mundo aqui quer cuidar da vida do outro, mas a vida é nossa, minha e sua, e a gente já sabe o que faz”. E eu não sabia que já sabia tudo isso, e que a vida era assim, e que já era minha – e dele. E ele foi, como se eu já soubesse que devia segui-lo. E eu fui, e o corredor me levou até o banheiro dos fundos. A porta aberta, a festa lá fora, fresta, eu não sabia, mas eu queria, e puxado pra dentro, o beijo que eu não sabia, de homem outro, me cavou a boca, a língua dele emendando a minha. “Eu vou te comer e você vai gostar, porque você sabe que quer”, e eu disse eu quero, mesmo sem saber que dizer sim também pode ser como acordar atrasado, no susto, porque não se ouviu o despertador. E então, a cabeça contra a pia, torneira correndo, água sobre a cabeça em brasa, festa lá fora. Na volta, a festa de todos, e todos pareciam adivinhar a nossa festa particular. E ele, homem bonito, o mais bonito de todos, dançava e ria, soldado que voltava da guerra, vivo, outro. E depois da festa, na casa dele, o carnaval parecia não ter fim. Eu tinha medo, mas eu não sabia que o medo não é o mesmo que covardia. E então, antes de ir embora, ele me pediu que fizesse com ele como ele tinha feito comigo, eu, o fiel aprendiz. Ele, homem forte, se fez ainda mais homem e forte, eu entre suas pernas, ele me tomando lição por lição. Na volta pra casa, no ônibus, olhava em volta, e era como se todos soubessem o meu segredo, como se o cheiro dele de tão forte em mim me denunciasse. O dia pareceu infinito, a noite cheia de esperas – na manhã seguinte: acabo de chegar na firma. Estou atrasado. Vou direto à mesa dele, mas ele não está. Ninguém me olha, como se o efeito agora fosse o contrário. Me chamam. Vou à outra sala. Não precisam mais de mim, dizem. Saio. Não sei direito o que fazer. Da calçada, avisto o boteco, do outro lado da rua. Vejo que ele está lá, tomando um café. Vou criar coragem e ir na direção dele, que deve estar imaginando o que fazer, já que também não precisam mais dele ali. Vou criar coragem, depois dessa noite, em que fiquei à espera de notícias suas.

Primeiro manifesto

Microfone. Como quem entoa um manifesto, ao som forte da batida.

O amor é sempre uma intenção à procura de uma ação. O saldo da escravidão foi a redução do homem negro a reprodutor, objeto, nunca o amante recíproco. Na intimidade entre casa grande e senzala, a violência era a mediação. Já aquela que ele amava poderia ser vendida a qualquer momento; seu filho poderia ser vendido ou trocado como qualquer outra mercadoria. Se amar é prática que se aprende, que história do amor é essa que se aprendeu a praticar, quando a intimidade sempre foi o campo da violência?

Quarta carta (Mãe)

Os dois garotos brincam. Estão no quarto. Ele dispõe os bonecos como quem cria um universo próprio, esperando que o outro aos poucos se aproxime e peça para entrar, para brincar também. Mas o outro observa. Um pouco mais velho, não vê nos bonecos tanta realidade. Ele já parece mais interessado na realidade que no brinquedo. Mas o que brinca, de tempos em tempos lança um olhar como se quisesse flagrar algo na atitude do outro. Jogo. Vira-se de costas, com a barriga para baixo, sobre a cama, para manipular os bonecos sem perder de vista o que acontece ao redor. O outro se aproxima. Pega um dos bonecos e finge interesse no duelo proposto. Abaixa-se ao lado. Próximo o suficiente para que as respirações se confundam. Moleques.

O ator faz o diálogo olhando para a plateia, frontalmente, oscilando a voz e o olhar, como se “quem fala” estivesse sempre se relacionando com o outro à sua frente.

Serginho, deixa eu te comer?
Como?
Deixa eu te comer.
Como assim?
Ah, vai ser gostoso, eu prometo que não vou te machucar.
É pra eu acreditar em você?
Você não confia em mim?
Eu?
Vai ser sua primeira vez, não vai?
Como é que faz?
É só uma brincadeira. Segura aqui.
Não quero brincar. Eu quero de verdade.
Então vem.
Não.
Vem logo sua bichinha. Segura aqui que eu vou te comer gostoso.
Não.
Ninguém vai ficar sabendo.
Mas por que não?
Melhor não.
Você acha?
Deixa? Eu quero te comer gostoso.
Sem contar pra ninguém?
Ninguém. Mas se você não deixar eu conto pra todo mundo na escola que você é bicha.
É? Então vai embora. Vai embora agora.
Só um pouquinho.
Vai embora agora. Mãê... Agora! Mãê... Você não entende nada.
E ele foi. E o menino ficou ali, por muito tempo, à espera de notícias suas.

Segundo manifesto

Microfone. Como quem entoa um manifesto, ao som forte da batida.

O amor então nunca é uma solução individual. São coletivas nossas dificuldades, nossas expectativas, nossas práticas. Ato de subjugação sempre, o uso do corpo negro definiu formas de afetividade: ou a submissão, como se coisa, tendo no prazer do outro a recompensa pela sua vida; ou a vingança máscula e ressentida de ser objeto cobiçado, tendo o que o senhor não tinha, embora descartável para o uso provisório. Resistir a isso, amando o outro, impõe uma forma de engajamento, de luta. Minha palavra, meu gesto: meu amor é guerrear.

(Fragmento de Cartas a Madame Satã)